Crítica


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Sinopse

Matriarca de personalidade forte, Pérola sonha constantemente com uma vida melhor para a sua família. Tentando organizar a vida de todo mundo, ela acaba tendo problemas de convivência com o filho aspirante a escritor.

Crítica

Há um tom agridoce que percorre a narrativa de Pérola. Mais do que segundo longa-metragem dirigido pelo também ator Murilo Benício, este é um dos textos basilares da carreira de Mauro Rasi, escritor e dramaturgo paulista falecido prematuramente aos 54 anos em 2003. Seu sucesso nos palcos, que lhe valeram reconhecimentos como os prêmios Shell e Molière (os dois maiores do teatro nacional), encontrou um dos pontos altos de sua obra justamente com essa, considerada a mais pessoal de suas peças. Ao mesmo tempo, é também a confirmação de um cinema de origem teatral bastante apreciado por Benício (seu longa anterior foi uma bem-sucedida releitura de O Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues, lançado em 2018). Em ambos, a família está no centro das atenções. Porém, se a encenação rodrigueana tinha raiz no confronto aos costumes e na provocação aos poderes estabelecidos (com foco na mídia sensacionalista), Rasi propõe uma aproximação mais calorosa – ainda que não menos crítica – sobre aquela que pode ser considerada o alicerce dos sentimentos que rodeiam o ambiente caseiro: sua própria mãe, com as (muitas) qualidades e (sem virar os olhos aos) defeitos de todo ser humano. Ou seja, há afeto de sobra, ainda que também exerça distanciamento e maturidade nessa apropriação. Uma escolha que guarda em si a força do discurso.

Mauro (Leonardo Fernandes, ator mais voltado ao ambiente teatral e de relativamente curta – e esparsa – filmografia, tendo participado antes do longa Deserto Azul, 2013, e da série Irmandade, 2019) é, talvez, aquele que melhor perceba o quão aglutinadora e sufocante pode ser a influência de sua mãe, Pérola (Drica Moraes, em estado de graça), em todos que se colocam ao seu redor, tanto oferecendo como sugando a energia vital desses, seja o marido (Rodolfo Vaz, de O Lodo, 2020), a irmã (Claudia Missura, de Querida Mamãe, 2017), que acabou como agregada ao ir morar com eles, ou mesmo ele e sua irmã (Valentina Bandeira, de Uma Quase Dupla, 2018). Cada um vai se apresentando como um satélite, com potencial para se tornar um planeta por si só, mas ainda assim mantendo uma órbita ao redor de um sol maior e catalizador – Pérola, obviamente. Os acontecimentos que os unem podem ser banais – a mudança para uma nova casa, a doença da avó, o noivado da filha, o amante misterioso, o namorado crente, e por aí vai. São figuras que vem e vão em diferentes graus de impacto nessa dinâmica pré-estabelecida, mas todos com um mesmo ponto em comum: a aceitação (ou não) que se dá apenas após passar pelo crivo da matriarca.

Mas Pérola está longe de ser uma vilã – nem mesmo se mostra como uma presença de autoridade, por mais que seja ela a dar a última palavra. Pelo contrário, o charme e carisma que lhes são naturais acabam sendo empregados sem maiores esforços em prol desse envolvimento quase simbiótico, estabelecendo relações que ofertam, mas também exigem trocas por vezes desproporcionais. Mauro, à medida que vai crescendo e deixando para trás a criança que se encantava com esta imagem maior do que a vida, dá espaço a um homem ciente da necessidade de se afastar e buscar meios de respirar de forma independente. Em contextos nos quais os segredos são tão bem guardados que apenas a fechar definitivo dos olhos é capaz de revelá-los, estará na sua partida – não por acaso, uma “morte” figurada – a única maneira de, enfim, se permitir ser quem, de fato, ele é. Esse afastamento não se dará sem conflito, mas da mesma forma como a tragédia se anuncia, bastará um gesto de retorno para que os braços mais uma vez se abram e a verdade que os une, enfim, se imponha.

Ator acostumado a transformações radicais na composição de seus personagens, Murilo Benício revela uma nova faceta como realizador, mais acanhada, capaz de se colocar em um segundo plano para permitir o brilho dos demais reunidos, mas não menos incisivo em suas escolhas e determinações: sabe bem o que almeja, e se assim o faz, colocando-se em uma posição secundária, eis uma escolha que assume sem restrições. Afinal, em Pérola os olhares estarão, independente do que aconteça, voltados a ela, sua protagonista. São as reações e seus gestos, cada palavra que profere ou, ainda mais importante, aquilo que cala sem nem mesmo precisar se manifestar, que irá fazer a diferença. Drica Moraes entende bem o peso que carrega sobre seus ombros, e ainda assim o faz com desenvoltura e segurança, confirmando-se não apenas à altura do desafio, como também o executando com graça, fazendo dessa uma figura emblemática em sua carreira, a ponto de rivalizar em talento e impacto com aquela alcançada por Vera Holtz quando a interpretou na versão original dos palcos. Não há sombra entre elas em direção de uma a outra, cada uma no seu espectro e hipnotizantes pelos feitos alcançados.

Se o dito italiano afirma que ‘parente é serpente’, é de se ter certeza também esses se reconhecem entre si, sabendo os limites até onde podem ir e o que podem ou não cobrar dos seus. Pérola é sobre alguém que não mais está presente, mas que nunca deixou – nem deixará – de se fazer viva, seja por tudo que proporcionou e pelas lembranças que seguirão com os que delas compartilharam. Eis aqui um filme sobre as pequenas coisas, aqueles momentos tão particulares, quase insignificantes, que pela visão daqueles alheios parecem não ter importância, mas que aos que os experimentaram foram capazes de exercer tamanha influência a ponto de representar um antes e um depois em suas jornadas. É também um trabalho sólido de um cineasta em formação e passarela para uma das performances mais marcantes do cinema brasileiro recente. Uma declaração de amor diante da qual se mostrará impossível permanecer indiferente, por mais que seja semelhante a tantas outras, mas ainda assim dona de uma individualidade única, e por isso mesmo, universal.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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