Crítica
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Sinopse
Obcecada por ficar famosa e presa à fazenda isolada de sua família, Pearl vive sob a vigilância da mãe e é obrigada a cuidar do pai doente. Mas, a fim de alcançar a vida que sempre sonhou, ela vai enfrentar tudo e todos.
Crítica
Prequela de X: A Marca da Morte, Pearl se passa em 1918, ou seja, quando o mundo ainda era atravessado brutalmente pela Primeira Guerra Mundial. Neste mesmo ano teve início a grave pandemia da gripe espanhola, doença que se espalhou rapidamente matando cerca de 50 milhões de pessoas. Quase todo o filme se passa numa fazenda, mas o cineasta Ti West faz questão de enfatizar constantemente que suas personagens vivem entre essas crises que atingem a coletividade. A protagonista é Pearl (Mia Goth, atriz que divide com Ti West créditos de produção e roteiro), a velhinha assassina do primeiro filme. Agora vista em sua juventude, ela mora com a mãe dominadora e o pai entrevado numa cadeira de rodas. Nesse universo em que a ausência masculina é um dos efeitos da guerra, a garota sonha em ser vedete do cinema. Ela almeja atingir o estrelato como forma de escapar a uma realidade dura. Em certa medida, pode ser comparada à personagem de Mia Farrow em A Rosa Púrpura do Cairo (1985), sobretudo em virtude da utilização da arte para fugir brevemente da rotina triste. No entanto, Pearl está longe de ser uma heroína romântica tomada de melancolia, estando mais para subproduto distorcido de uma série de opressões, frustrações e falta de perspectiva. Ti West nos apresenta ao sofrimento, mas também ao ímpeto assassino (na cena do sacrifício do ganso).
Uma das características mais proeminentes de X: A Marca da Morte é a intertextualidade, a forma como busca referenciais icônicos na tradição do cinema slasher (subgênero do terror) para construir uma experiência com métricas metalinguísticas. Em Pearl o cinema continua sendo uma das vedetes do espetáculo. O interesse amoroso proibido é projecionista, os animais que fazem companhia à protagonista são batizados com nomes de astros e estrelas, Pearl se sente protegida quando sentada no escuro admirando as figuras projetadas numa telona branca. Além disso, a tomada do carro submergindo com um cadáver (que também está no filme anterior) remete imediatamente à Psicose (1960). No entanto, aqui a alusão é menos solta, pois estabelece imediatamente no nosso imaginário uma ponte entre Norman Bates (protagonista de Psicose) e Pearl, pessoas que enlouquecem em circunstâncias de extrema solidão e possuem relações conflituosas com as respectivas mães. Por sua vez, a linda cena da protagonista dançando com um espantalho remete diretamente ao clássico O Mágico de Oz (1939). Porém, é importante perceber que Ti West enfatiza uma distorção dos ideais românticos, fazendo de Pearl uma Dorothy deformada pelo sofrimento e que deseja encontrar a sua Oz para nunca mais precisar encarar a própria miséria. Pearl é um filme mais maduro se comparado ao antecessor.
X: A Marca da Morte tem dois atos muito bem definidos. No primeiro, promove uma discussão sobre cinema com a chegada da equipe de filmagem à fazenda da caquética Pearl. No segundo, uma onda torrencial de homicídios que demonstra toda a reverência de Ti West ao subgênero slasher. Em Pearl essa divisão entre atos é menos brusca. Ainda no terreno das comparações, é preciso ressaltar a importância de Mia Goth para o resultado cheio de vivacidade que sentimos vinda da telona. Sim, pois desta vez temos um filme que depende bem mais da sua estrela. Com menos personagens e focado essencialmente num processo gradual de enlouquecimento, este longa-metragem exige de Mia Goth como intérprete. E ela dá conta do recado com louvor. Sua composição é caracterizada pelo infantilismo de Pearl, uma espécie de regressão à infância diante da mãe impositiva e castradora. Desse modo, é o trabalho corporal (e de voz) da atriz que mantém subentendida a noção de Pearl se sentindo novamente uma criança amedrontada diante da bruta autoridade materna. Essa fragilidade tipicamente infantil entra em choque com impulsos associados a adultos, como o desejo carnal e a agressividade. Quando Pearl finalmente decide se entregar à luxúria, fica implícita a mão invisível do cristianismo a condenando como pecadora. Aliás, a religião é um elemento fundamental, vide os ícones e as menções aos dogmas.
Ti West e Mia Goth mantêm conexões profundas entre X: A Marca da Morte e Pearl. Não se trata somente de contar uma história pregressa a do outro longa-metragem. Ambos os filmes agem em consonância, como se de fato constituíssem um universo que ressoa ciclicamente as mesmas notas. Num dos instantes mais eróticos do trama, o projecionista envolve Pearl com um pornográfico mudo – A Free Ride (1915), produção real, diga-se de passagem. É a utilização do cinema para reforçar essa ideia sedutora da subversão que, numa sociedade terrivelmente cristã, naturalmente soa como algo pecaminoso. Quando o homem diz “quem sabe um dia não te vejo fazendo um filme desses”, se referindo ao pornô, ele escancara as conexões com Maxine, personagem interpretada por Mia Goth no primeiro filme de uma prometida trilogia –justamente a estrela do cinema underground pornográfico. Ti West é habilidoso na distribuição significativa da simbologia: o porco apodrecendo do lado de fora da casa (alusão à deterioração psicológica de Pearl); a sugestiva retirada do espantalho crucificado para dançar e satisfazer desejos carnais reprimidos; a crocodilo que denota o instinto predatório de quem revida de modo agressivo contra os que se recusam a lhe dar amor. Utilizando cores vibrantes e apostando forte no poder da fetichização, o filme garante um lugar ao sol. E Mia Goth arremata a sua ótima interpretação com um sorriso que deve entrar para o rol dos mais dolorosos do cinema recente.
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