Paraíso

Crítica


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Sinopse

Em Paraíso, imagens e sons de naturezas muito diversas se sobrepõem e contrapõem em tela. Em destaque, a constituição do Brasil a partir de seu passado colonial e escravocrata. A jornada inquieta percorre a violência, a resistência, as forças e contradições que compõem este país. Documentário.

Crítica

Realizadora que ao longo de sua carreira tem demonstrado forte interesse pelo documentário musical, Ana Rieper conduz uma guinada em sua filmografia com Paraíso, provavelmente o seu projeto mais ousado até então. Responsável por títulos que seduziam a audiência tanto pela força de suas histórias como pela ternura de suas melodias, como Vou Rifar Meu Coração (2011) e Nada Será Como Antes (2024), ela agora se debruça sobre a formação do Brasil enquanto país e questiona conceitos pré-estabelecidos sobre essa nação e seu povo. A proposta, como se percebe, é por demais ambiciosa. Mas a mesma dinâmica envolvente e a condução segura de seus trabalhos anteriores mais uma vez se faz presente, aliada a uma montagem precisa, que vai direto ao ponto sem excessos ou distrações, ao mesmo tempo em que cobre assuntos dos mais diversos. E quando parece dar a entender ter fugido do ponto, a retomada seguinte se confirma nunca tardia. O impacto no espectador é tal qual o empenho da cineasta em oferecer luz a um debate que não pode mais ser evitado.

Segundo a diretora, Paraíso levou mais de uma década para ficar pronto. E isso se percebe na tela. Pois mesmo que sua duração não exceda os 80 minutos, o jogo de imagens e texto é tamanho que impressiona pela diversidade, ao mesmo tempo em que exerce seu direito de abordar aquilo que lhe interessa, sem esquecer dos fundamentos necessários para um maior e mais amplo entendimento. O ponto de partida é um livro referencial para o entendimento da sociedade brasileira, ou assim tem se apresentado ao longo do último século: Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Publicado em 1933, o volume do sociólogo aponta que uma concepção faz parte da outra, como se complementares fossem: os homens brancos não seriam o que são não fossem os negros que por tanto tempo os serviram. Como se a relação de escravidão fosse um detalhe, um meio que possibilitou chegar ao fim hoje visto de norte a sul do país, por meio de uma identidade sociocultural construída tendo como base a miscigenação racial. Mas seria isso mesmo?

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Rieper parte dessa provocação para colocar em dúvida certezas até ontem dadas como absolutas, mas que hoje começam a ser revistas. A família branca que se oferecia para levar consigo uma menina negra do interior para a cidade, prometendo “melhores oportunidades de vida”, apenas para colocá-la num novo sistema escravagista, dando-lhe obrigações e deveres, com um mínimo de direitos em troca. Ou alguém ainda acredita que um quartinho minúsculo e sem janelas no fundo da residência é uma troca justa? As mulheres que precisam ser subservientes, a submissão de todo um gênero a outro, e a suposta docilidade que essas devem demonstrar, como seres domesticados, que não devem pensar e nem mesmo reagir, apenas aceitando o que lhes é relegado como se não fossem merecedoras de nada além. O mais assustador, quando colocadas tais situações lado a lado, é se dar conta como tal manipulação mental ao longo de diversas gerações colocou as mulheres como maiores inimigas de si mesmas. Quebrar essa corrente não só é necessário, como urgente. Porém, a mudança só vem por meio de uma tomada de consciência.

O Paraíso descrito por Ana Rieper é um Brasil de fantasia, irônico e debochado, que existe mais na imaginação dos turistas e nos estereótipos vendidos por agências de viagem do que na dura realidade das ruas. Desenvolvido como um fluxo de consciência, o filme explora conceitos e links entre ideias distintas, estabelecendo relações e explorando-as da mais rente superfície até o mergulho profundo, para depois retomar um ponto anterior e dele seguir um novo caminho. A lógica aqui se estabelece por meio tanto dos tópicos levantados pela narrativa como pelas conclusões as quais o espectador irá alcançar. Cabe à realizadora o mérito de confiar na perspicácia desse sentado na plateia, pois este, como poucos outros, é um longa que se completa por meio das sinapses verificadas no outro. O conjunto, portanto, é mais importante do que qualquer parte em separado. Digno de atenção e do qual não se pode escapar. Com ritmo, gingado e malemolência. Adotando uma linguagem tão própria quanto universal, capaz de elevar o debate, ao mesmo tempo em que atinge reflexões em meios até então não perpassados. E é justamente essa amplitude que dota o discurso de uma força insuspeita e capaz de, enfim, provocar alguma mudança.

Filme visto durante o 14º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em junho de 2025

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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