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Sinopse

Vidas desconhecidas indiretamente interligadas, mesmo que apenas pelos dramas e paixões. Este é o caso de Augusto, Álvaro, Joachim, Vicente, Marlene, Cláudio, e Valéria que, em lugares e tempos distintos, se encontram em um momento limite entre a vida e a morte.

Crítica

Ao longo de mais de uma década, a prolífica produtora cearense Alumbramento manteve seu espírito de coletivo artístico audiovisual intacto, seguindo invariavelmente pelos caminhos da experimentação. Em O Último Trago, o trio de realizadores e integrantes do grupo Luiz Pretti, Ricardo Pretti e Pedro Diógenes dá continuidade a essa proposta de exploração da linguagem e de ruptura com as estruturas cinematográficas clássicas, apresentando uma narrativa dominada por um senso de injustiça histórica que se abate e conecta, ainda que de forma indireta, em um nível mais simbólico, os personagens que povoam os três arcos formadores da trama. Tais arcos, bem distintos entre si, especialmente no quesito estético – apresentando registros em diferentes janelas, por exemplo – e aparentemente distantes em relação a noção de tempo e até mesmo espaço, se interligam através da onipresença do fantasma de uma guerreira indígena, Valéria (Samya De Lavor).

Esse fantasma, que exerce uma força imperante sobre os outros personagens, protagoniza uma espécie de jornada de acerto de contas com a história do Brasil, revolvendo as cicatrizes da colonização, algo explicitado nas imagens que abrem o filme, trazendo um antigo mapa de navegação em chamas. Essa sugestão imagética se desenvolve sutilmente no primeiro ato, praticamente sem diálogos, cujo plano de abertura registra um homem que sai do mar, abandona suas vestes e dirige nu pela estrada. No caminho, ele resgata uma mulher ferida, encontrada se arrastando, também praticamente nua, pelo acostamento. Ela, uma stripper, termina por encarnar o espírito de Valéria em sua apresentação no palco de uma boate, na sequência que encerra esse prólogo. Assim, de imediato, os diretores evidenciam um dos principais elementos de sua obra, a fisicalidade emanada da proximidade com os corpos, em particular, os femininos.

Pois são as mulheres que protagonizam a luta em O Último Trago, com seus corpos transformados em representações da resistência e também do flagelo sofrido ao longo dos séculos pelos povos indígenas, pelos escravos e por todos aqueles oprimidos e marginalizados de alguma forma. É o corpo feminino na tela que seduz, que enfrenta, que apresenta as marcas, os ferimentos, a pintura. Dentro desse contexto, a arte – também ferramenta de resistência – se assume como uma expressão essencialmente feminina, já que a música, a dança e a poesia são oferecidas pelas mulheres da trama, como Marlene (Elisa Porto), a figura principal do ato central, aquele que mais se aproxima de uma narrativa convencional e que melhor estabelece as relações entre personagens. Encontrada largada no meio do nada, tal qual a encarnação stripper de Valéria, Marlene é acolhida pelo dono de um bar isolado, despertando neste sentimentos reprimidos, além de atrair os olhares de todos clientes, bem como o fantasma da guerreira indígena.

Uma atração justificada pela imposição de Elisa Porto na pele da personagem, que exibe uma força magnética em suas interpretações musicais, como na da canção Beco da Noite – de Rodger Rogério & Teti, nomes notórios do movimento conhecido nas décadas de 1960/70 como Pessoal do Ceará, reforçando os laços estreitos do trio realizador com a regionalidade e as raízes culturais do estado. É também pelo aspecto visual que o arco se impõe, se valendo da horizontalidade da janela mais aberta na composição de planos de grande beleza – sejam aqueles exteriores que integram as paisagens naturais ou aqueles que ressaltam a expressividade das cores e dos objetos do ambiente do bar. Uma afirmação do apuro técnico dos cineastas e de seus colaboradores – com destaque para o trabalho de montagem e de edição de som – que se estende ao ato final, este em janela reduzida, quase quadrada, confinando o clímax de tintas surrealistas – não à toa o Manifesto de André Breton é citado a certa altura.

Esse arco derradeiro de O Último Trago, dialoga com o viés anárquico do trabalho anterior do trio, Com os Punhos Cerrados (2014), trazendo uma subtrama – que de algum modo tenta amarrar toda a narrativa – sobre um quarteto revolucionário feminino combatendo a injustiças históricas, materializadas principalmente nos dogmas da Igreja Católica. Se por um lado a força plástica é mantida – vide a belíssima sequência do enterro sob as ondas do mar – trazendo referências aos primórdios do cinema mudo e expressionista, por outro, o mergulho profundo no campo metafórico – algo habitual nos filmes da Alumbramento – acerca dessa violenta herança colonial brasileira, esbarra num hermetismo excessivo que, por mais fiel que seja ao experimentalismo e à subversão de signos propostos pelo coletivo, afasta o longa da conexão mais íntima e humana estabelecida no ato anterior.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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