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Sinopse

Em O Conde de Monte Cristo, o jovem Edmond Dantès (Pierre Niney) é alvo de uma armadilha, preso no dia de seu casamento por um crime que não cometeu. Após 14 anos na prisão da ilha de Château d’If, ele consegue fugir. Agora rico, ele assume a identidade de um aristocrata e busca vingança. Selecionado para o Festival Varilux de Cinema Francês 2024.

Festival Varilux

Crítica

Em Uma Certa Tendência do Cinema Francês, seguramente um dos textos críticos mais influentes do século 20, François Truffaut condenava duramente o que chamava de “cinema de qualidade”. Num momento importante do artigo, ele analisava os filmes baseados em grandes obras da literatura. Para o então jovem crítico, a relação entre livros e cinema acontecia de maneira pouco criativa na França daquela época. Parafraseando esse que viria a ser um dos expoentes da Nouvelle Vague, a maioria das adaptações então seria feita não por homens de cinema, mas por roteiristas literatos que subestimavam o cinema. Alexandre de La Patellière e Matthieu Delaporte certamente estariam na linha de mira de François Truffaut se eles fossem contemporâneos. Depois de lançar os grandiosos Os Três Mosqueteiros: Dartagnan (2023) e Os Três Mosqueteiros: Milady (2023), os dois recorrem novamente ao escritor Alexandre Dumas para um empreendimento cinematográfico audacioso. Sua versão de O Conde de Monte Cristo é grandiloquente, pomposa e recheada de atores e atrizes franceses conhecidos. Porém, há raros momentos em que conseguimos enxergar qualidades estritamente cinematográficas nele. Sobre a trama não há objeções, pois estamos falando de um livro clássico que atravessou séculos. Ao transpor a história para o cinema, Alexandre e Matthieu fazem um bom trabalho de ilustração.

O protagonista é Edmond Dantès (Pierre Niney), jovem marinheiro recém-promovido a capitão de uma embarcação, prestes a começar a vida de casado ao lado de sua amada Mercédès (Anaïs Demoustier), quando é vítima de uma conspiração. Homens invejosos dão um jeito de colocá-lo na cadeia sob o pretexto de espionagem napoleônica visando conspirar contra a monarquia. No entanto, antes que Alexandre e Matthieu desdobrem essa intriga, os dois apresentam Edmond a partir de sua valentia. Numa cena plasticamente bonita, ele salva uma mulher da morte certa por afogamento depois de embarcações serem destruídas. Assim, nos é dito imediatamente: esse homem é bondoso e corajoso, o exemplo a ser seguido. Isso serve para o espectador ficar completamente ao lado do sujeito, logo sofrendo por seu infortúnio e torcendo por uma reviravolta quando as injustiças começarem. Mais tarde, quando Edmond ressurge dos mortos como o milionário e vingativo Conde de Monte Cristo, os realizadores não questionam a ambiguidade moral intrínseca a todas as manipulações que ele arquiteta a fim de castigar os inimigos. Mesmo fazendo coisa inomináveis, ele continua simpático à plateia, méritos mais da criação de Alexandre Dumas do que da adaptação. Há determinados limites que, uma vez transpostos, tornam justificáveis qualquer ato de violência ou ataque? O filme não pergunta isso.

Alexandre de La Patellière e Matthieu Delaporte não estão dispostos a dialogar com o livro para extrair dele algo singular. Contentam-se em dar ossos e musculatura aos personagens, exibindo uma tendência ilustrativa, ou seja, simplesmente transportando às telonas o enredo popular impresso nas páginas traduzidas para dezenas de idiomas. Há apenas dois instantes em que a dupla consegue se desvencilhar de uma subserviência limitante e criar atmosferas instigantes, para além daquilo que se vê e fala. No primeiro deles, o Conde de Monte Cristo conta um suposto sonho no qual lhe foi revelada a localização do cadáver de um bebê. Na verdade, ele está revelando um infanticídio real. No entanto, apenas os criminosos, o acusador e nós sabemos disso. A câmera captura com muita perspicácia a diferença entre a excitação do convidado que acredita na fábula e a apreensão dos culpados cada vez mais inquietados pelas “coincidências” entre a realidade e a ficção. Portanto, aqui os realizadores até são fiéis à matriz, mas conseguem valorizar com ferramentas audiovisuais algo representado originalmente por meio de palavras. No segundo, o Conde e Mercédès conversam a respeito de um amor interditado, supostamente se referindo à ex-paixão do nobre, mas falando deles mesmos. É outro instante bonito em que a versão de O Conde de Monte Cristo apresenta qualidades especificamente cinematográficas.

Alexandre de La Patellière e Matthieu Delaporte parecem mais preocupados com a manutenção das palavras e dos eventos contidos no original literário do que com o desenvolvimento de uma leitura pessoal em forma de filme. As três horas de duração são divididas desta maneira: a primeira é consagrada à apresentação dos personagens, ao desenho das injustiças e aos anos sofridos na cadeia; a segunda e terceira são utilizadas para tratar da vingança. Pela simples observação do tempo concedido para cada coisa, dá para afirmar que o mais importante aos roteiristas/diretores era a desforra, bem mais do que o martírio no cárcere, por exemplo. Com tantas tramas e subtramas a serem desenvolvidas, O Conde de Monte Cristo acaba sendo um filme enorme que nem sempre aproveita bem o tempo à disposição. A construção da relação do Conde com os igualmente injustiçados Haydèe (Anamaria Vartolomei) e Andréa (Julien De Saint Jean) é limitada e insuficiente, o que enfraquece o teor dramático do encerramento. Já a vilania de Fernand de Morcef (Bastien Bouillon) é fragilizada pela necessidade de observar outros homens ruins, tais como Villefort (Laurent Lafitte), que rouba a cena sempre que pode. Já Pierre Niney está ótimo como protagonista. O resultado é uma superprodução com figurinos e cenários impecáveis, além elenco cheio de grandes talentos. Cinema de qualidade, como diria Truffaut.

Filme visto no Festival Varilux de Cinema Francês em outubro de 2024.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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