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Sinopse

Ruby é conhecida na cidadezinha onde mora por ser a única pessoa dotada de audição dentro de uma família de surdos. Ela serve de intérprete para a mãe, o pai e o irmão, enquanto ajuda nos negócios com a pesca. Enquanto sofrem com a crise econômica, a garota sonha em se tornar cantora. Quando recebe a oportunidade de fazer o teste para uma universidade prestigiosa numa cidade distante, ela enfrenta o dilema de abandonar a família que sempre dependeu dela.

Crítica

A premissa de No Ritmo do Coração desperta atenção por si própria: Ruby (Emilia Jones) é a única pessoa capaz de escutar numa família de surdos. A mãe, o pai e o irmão dependem da ajuda da garota para efetuar a ponte com a comunidade, sofrendo com o preconceito da cidadezinha pouco acostumada a lidar com as diferenças. Por ironia do destino, a garota sonha em se tornar cantora, algo percebido pela mãe Jackie (Marlee Matlin) como uma provocação: “Se eu fosse cega, você ia querer virar pintora?”. É subentendido que a menina viverá com eles para sempre, na função de intérprete. Ora, como adquirir autonomia nestas condições? Haveria diversas maneiras de retratar a situação da estudante: pelo prisma do espetáculo, pela lamentação paternalista, pela perspectiva do sacrifício pessoal. O melhor aspecto do drama decorre da naturalidade com que a cineasta Sian Heder descreve seus personagens. O ponto de vista se insere no dia a dia destes indivíduos: a câmera se senta com eles durante as refeições, acompanhando o trabalho cotidiano no barco de pesca, os trajetos de bicicleta, os encontros no bar. O espectador é convidado a enxergá-los de igual para igual, em instantes que representam mais do que cenas de conflito concebidas para avançar a narrativa. O longa-metragem observa os Rossi por sua universalidade, ao invés de sua singularidade.

Em se tratando da adaptação de um sucesso de bilheteria francês, era de se esperar que a produção apostasse numa repetição do tom e mesmo dos erros de seu antecessor, de preferência com grandes atores nos papéis principais. O resultado poderia ser algo próximo de outros títulos inexpressivos em termos de bilheteria e ambição artística: Amigos para Sempre (2017, refilmagem de Intocáveis, 2011), Olhos da Justiça (2015, refilmagem de O Segredo dos Seus Olhos, 2009) e Oldboy: Dias de Vingança (2013, refilmagem de Oldboy, 2003). Felizmente, os produtores optam por um elenco pouco conhecido, onde os personagens surdos são interpretados por atores surdos de fato: Marlee Matlin, Troy Kotsur e Daniel Durant, cujas composições excelentes chamam atenção à quantidade de talentos dotados de alguma forma de deficiência, subaproveitados pela indústria. Evitando ampliar o teor melodramático da obra original, a cineasta o minimiza em versão íntima. Referências culturais são devidamente adaptadas: o filme norte-americano se transforma numa adaptação bem-sucedida de A Família Bélier (2014), ao invés de uma cópia em língua estrangeira. A interação entre os personagens soa plausível, pois o preconceito e as dificuldades de indivíduos surdos constituem parte mínima dos elementos que os caracterizam. Jackie, Frank e Leo possuem personalidades bem definidas para além da surdez.

No Ritmo do Coração (2021) abraça as regras do feel good movie, com dose generosa de humor. Heder jamais ri dos personagens, e sim com eles. Os motivos de humor são dissociados da deficiência: o roteiro se diverte com a vida sexual desinibida dos pais, a vaidade excessiva da mãe, o estilo de vida hippie do pai, as piadas da melhor amiga, as excentricidades do professor de música (Eugenio Derbez). A estrutura está repleta de conveniências e estereótipos, ainda que abordados com cuidado, ou seja, sem monopolizar a trama nem buscar o riso a qualquer preço. Estão presentes a figura do professor-mentor que transforma a vida dos alunos; o patinho feio descobrindo o seu valor até se converter em cisne; o romance com o menino inalcançável do colégio; o teste predestinado ao fracasso na universidade prestigiosa. Entretanto, os clichês se diluem na trajetória geral: o professor de música ajuda Ruby, porém o roteiro o dispensa quando precisa se focar em outros conflitos; a amiga serve de apoio, ainda que se envolva em atividades próprias quando está distante da protagonista. A jovem cantora possui talento evidente, mas nunca é tratada como a melhor artista do mundo. A diretora modera expectativas.

No aspecto musical, dedicam-se sequências inteiras ao canto de Ruby, seja sozinha, durante ensaios e sobre o palco. A naturalidade se estende às músicas diegéticas, ou seja, como parte integrante da história. Ao invés de canções pop e chamativas, a trilha sonora opta por títulos antigos como Something's Got a Hold On Me, de Etta James, You're All I Need To Get By, de Marvin Gaye e Tammi Terrell, e Both Sides Now, de Joni Mitchell. A ótima Emilia Jones oferece uma interpretação plena de vigor, porém devidamente tímida: quando se encontra sobre o palco com os colegas de coral, não se destaca. A direção oferece um belo “plano subjetivo do som”: uma das mais aguardadas sequências musicais é completamente emudecida para oferecer o público, por um breve momento, o incômodo da ausência de som durante uma apresentação musical. Devido ao tema da surdez, era fundamental que Heder e o diretor de som Paul Lucien Col efetuassem um trabalho sonoro cuidadoso. A dupla cumpre este desafio com méritos: a sequência do bar, quando Leo tenta se divertir com os amigos, e os ruídos altos do pai, mãe e irmão executando tarefas caseiras ressaltam as diferenças de percepção entre Ruby e os familiares. 

No Ritmo do Coração se sobressai graças à multiplicidade de emoções e à capacidade de se colocar no lugar do outro, como diria a canção final: “Eu olhei as nuvens pelos dois lados / Por cima e por baixo, e mesmo assim / São ilusões de nuvens que eu lembro / Eu realmente não sei nada sobre nuvens”. O roteiro se dedica à solidão de Ruby, às necessidades do pai e da mãe, ao sentimento de culpa da garota por ouvir, ao rancor do irmão mais velho por precisar dela. Ao final, é possível compreender as atitudes de cada um, num universo desprovido de vilões e mocinhos, de vítimas e agressores. As dificuldades são inerentes à situação inicial, dispensando problemas externos comuns a narrativas do tipo - nada de doenças, adversários específicos à estudante, jurados rígidos no teste para Berklee. As alegrias, tristezas e recompensas decorrem do cotidiano, produzindo uma fluidez atípica para uma refilmagem. O discurso ainda presta homenagem à integração de indivíduos com deficiência à sociedade, sem segregá-los. A aposta na cooperativa de pescadores e na comunicação simultânea com voz e libras representa a crença na convivência. Nos tempos em que vozes retrógradas do governo brasileiro defendem o segregacionismo “para não atrapalhar os outros”, a arte oferece uma resposta empática e complexa à ideologia do gueto. 

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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