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Sinopse

Candidato a estrela infantil,o talentoso Memo é substituído por um menino que se adéqua melhor aos padrões da indústria do entretenimento nos anos 1990. Triste, ele vai morar com o tio numa fazenda no interior do Chile.

Crítica

O chileno Ninguém Sabe que Estou Aqui tem dois blocos distintos. No primeiro, há a observação um tanto misteriosa do cotidiano de Memo (Jorge Garcia), sujeito que vive com o tio em isolamento numa ilha. O cineasta Gaspar Antillo ressalta os silêncios resultantes de uma dor calcificada, oferecendo, em meio à descrição da saturada personalidade central, certos lampejos encarregados de resgatar algo do passado como o causador da casmurrice. Logo ficamos sabendo que o protagonista tinha um talento vocal enorme na infância, aspirava à celebridade, mas foi considerado inadequado visualmente. Ele, então, “emprestou” seus valorosos timbres para um menino de aparência mais comercializável, por assim dizer. Virou a contragosto ghost singer. Entrou em desgraça adiante ao perder as estribeiras em rede nacional. Planos zenitais – com a câmera apontando de cima para baixo – e um par de aproximações e/ou distanciamentos frequentes nessa etapa do filme sinalizam em vão a possibilidade do insuspeito, daquilo que não necessariamente mora nessa superfície.

Gaspar Antillo lança mão de dúvidas não sanadas. Por que Memo aproveita a saída dos moradores para adentrar nas casas, correndo risco desnecessário? Como diabos a publicação de um vídeo seu cantando o sucesso de antigamente provocou todo um estrépito desproporcional daqueles? Qual a posição ocupada pelo pai, que chega a mencionar o pertencimento à esfera pública, do antes candidato ao estrelato? Mais do que lacunas a serem preenchidas pelo espectador, se tratam de omissões avolumadas a ponto de tornar o andamento gradativamente beirando o leviano. A entrada em cena da mulher responsável por causar uma pequena fissura nessa membrana que separa Memo do mundo exterior é um lugar-comum igualmente mal utilizado no desenvolvimento dessa trama desconexa. Conhecido amplamente como o Hurley da série Lost (2004-20100, Jorge Garcia sai-se muito bem como esse homem carregado de rancores até prescindir da palavra e quase totalmente do contato humano. Pena que ele seja solapado na segunda metade do filme.

Da descoberta da imprensa em diante, Ninguém Sabe que Estou Aqui acumula insuficiências e empilha inconsistências. A forma como a influência da internet traça novos caminhos ao protagonista é bastante forçada. Ainda que este tenha ficado conhecido no passado por agredir o “menino prodígio” ao vivo na televisão, o transcorrer de, ao menos, 20 anos, não parece ter afetado a memória do povo chileno. Afastado da civilização, como bem mostra a metade inicial do longa-metragem, ele inexplicavelmente é reconhecido apenas porque canta uma música badalada nos anos 1990, mesmo tendo voz e aparência obviamente alteradas drasticamente com o avançar de tantos anos. O realizador sequer tenta estofar essa lacuna enorme com algo torpe do tipo “ fruto do milagre da música”. Simplesmente passa como trator por cima do nexo, provavelmente torcendo para que o espectador não se atenha aos detalhes. O próprio vínculo com a personagem interpretada por Millaray Lobos, no fim das contas, não vai além de uma desculpa esfarrapada, pois não é aprimorado.

Há vários movimentos em Ninguém Sabe que Estou Aqui que carecem de amadurecimento, o que acentua a sensação de pressa. Numa cena, Memo refuta a possibilidade de reencontrar um algoz na televisão. Seu subsequente convencimento, portanto, bate como indício da ansiedade de Gaspar Antillo para chegar ao clímax. Essa catarse é fundamentada na ideia de que é possível mentir, mas o talento está a serviço dos justos. Indo em desabalada carreira ao momento pretensamente emocionante, ele negligencia a relação do protagonista com o tio protetor, faz de conta que não viu a chance de mergulhar na desconsideração do pai e se esquiva de observar o amor como força motriz. Como consequências primárias, acaba esvaziando o percurso emocional do rapaz corpulento que se desloca pelos cenários com uma vagarosidade que denota o seu desânimo vital. O ostracismo dói absurdamente, mas não é capaz de revelar o anseio pregresso de quem foi arremessado no esquecimento. O cineasta confunde supressões bem-vindas com hiatos (in)convenientes.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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