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Sinopse

Num cenário politicamente incorreto, o judiciário belga leva os espectadores aos bastidores de investigações criminais da vida real. O documentário mais estranho do que ficção faz um passeio selvagem e fascinante.

Crítica

É um valor a dúvida inicial quanto à natureza documental de Nem Juíza, Nem Submissa. Isso acontece porque neste filme a realidade se apresenta de maneiras absurdas, ao ponto de parecer caricatural e inverossímil, articulada ficcionalmente. Durante três anos os cineastas Yves Hinant e Jean Libon acompanharam o cotidiano da juíza de instrução Anne Gruwez, registrando-a em audiências, investigações e visitas a várias cenas de crime. Personagem controversa, a magistrada emite opiniões ora só surpreendentes, ora bastante distantes do politicamente correto, chegando a repreender um pedinte visivelmente acometido por uma doença motora, ordenando-o que pare de tremer. Não parece, no entanto, que os realizadores desejam criar uma interlocução simples entre a protagonista e o espectador, intentando oferecer um painel complexo do sistema judiciário belga, uma instituição pouco esquadrinhada em suas particularidades. Eles frequentemente pecam pelo excesso de jocosidade. Em determinados momentos, a truculência da mulher chega a ser ofensiva.

Nem Juíza, Nem Submissa mira, também, os privilégios dessa funcionária pública que não se faz de rogada na presença da câmera, pedindo, por exemplo, ao funcionário que ligue a sirene do carro a fim de conseguir vantagens no trânsito. Ao invés de condicionar nosso olhar por caminhos pré-concebidos, Yves Hinant e Jean Libon desenham esse cotidiano conturbado com certo desprendimento, pesando a mão nas gracinhas e no que tange ao perfil prevalente dos meliantes diante da juíza. Não passa despercebido, pois absolutamente gritante, que a maioria dos casos tenha imigrantes como figuras potencialmente nocivas. O longa-metragem não toma uma posição crítica diante de tal conjuntura, tampouco se preocupa em repreender as manifestações xenófobas, de certa forma sublinhando preconceitos, como no instante em que flagra a estupefação da autoridade diante da cultura muçulmana, especificamente o costume enraizado de casar consanguíneos.

Em passagens como a supracitada, o filme ressalta a perplexidade de alguém supostamente evoluído diante da pretensa barbárie forasteira, alinhando-se a um eurocentrismo que cheia a mofo e alienação. Nem Juíza, Nem Submissa não chega a asseverar as colocações politicamente incorretas de Anne, mas permanece num incômodo limite entre meramente registra-las, de forma passiva, e naturaliza-las, o que quase significa aval, isso de acordo com a máxima do “quem cala consente”. Afora esse posicionamento ético altamente questionável, o conjunto tem passagens curiosas, como as deliberações da protagonista na companhia de seu rato de estimação e as brincadeiras com os colegas de escritório que, inclusive, acabam reproduzindo grosserias e, portanto deflagram pensamentos tacanhos vigentes e/ou aceitos pelo entorno. O tom do documentário é leve, com a trilha sonora encarregada de acentuar o contorno anedótico que casualmente ameaça as ponderações dramaticamente funcionais. É um longa premeditadamente estranho e polêmico.

Nem Juíza, Nem Submissa utiliza como fio condutor um caso de estupro seguido de assassinato, passando por comparações de DNA, exumação de antigos suspeitos e a caça ao acusado que evadiu aos Estados Unidos. Essa espinha dorsal é útil por oferecer sustentação ao desfile dos outros processos, que variam da violência doméstica ao filicídio motivado por alegadas epifanias religiosas. Exatamente ao encarar a mãe que descreve com requintes de espontaneidade o doloroso itinerário do homicídio do filho, Yves Hinant e Jean Libon acabam reforçando sua impertinente localização intermediária entre a simplória observação e os pareceres. Anne funciona como uma ouvinte compreensiva, anotadora do testemunho alheio, enquanto a estrangeira, a quem é negado o escrutínio de sua singularidade e complexidade, cabe o papel de “monstra ignorante”, pecha que a câmera endossa sem, ao menos, procurar uma compreensão para além das tragédias elementares.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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