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Sinopse

Plantonista de um necrotério, Stênio possui um dom paranormal de se comunicar com os mortos. Trabalhando a noite, ele já está acostumado a ouvir relatos do além. Porém, quando essas conversas revelam segredos sobre sua própria vida, o homem ativa uma maldição perigosa para si e todos a sua volta.

Crítica

Até para um homem tão acostumado com a morte quanto Stênio (Daniel de Oliveira), a vingança além-túmulo de Odete (Fabíula Nascimento) soa como algo demasiadamente amedrontador e macabro. Antes do passamento brutal dela, os dois eram casados, vivendo às turras, é verdade, mas conservando um lar juntos. O protagonista de Morto Não Fala possui a habilidade bastante peculiar de conversar com cadáveres, ponte que ora lhe dá apenas lamúrias de quem ainda está lidando com o fato de ter desencarnado, ora o alerta quanto ao caso extraconjugal que a mulher mantém com Jaime (Marco Ricca), o dono da padaria onde ele vai aliviar um pouco a tensão das madrugadas no Instituto Médico Legal. O cineasta Dennison Ramalho investe não somente na riqueza de detalhes relativos a corpos sendo eviscerados, com diversos vislumbres de procedimentos corriqueiros para quem trabalha num espaço como esse, mas também na delineação de um pano de fundo com várias violências.

Boa parte dos corpos que passam pelas mãos de Stênio, e que com que ele trocam ideias, são de jovens abatidos pela polícia paulistana. Em outro momento, a entrada ostensiva de vítimas fatais do deslizamento de barrancos numa comunidade sublinha essa contextualização. Morto Não Fala se passa na periferia da capital paulista, embora alguns sotaques gaúchos sejam perceptíveis – fruto do papel da Casa de Cinema de Porto Alegre como uma das produtoras do longa-metragem. Daniel de Oliveira vive um homem ensimesmado, influenciado pela rotina incomum de costurar gente que lhe confessa coisas aleatórias. Ao saber por uma das bocas em decomposição da traição de Odete, faz uso maquiavélico de seus contatos, ao mesmo tempo quebrando um pacto com os mortos e determinando o destino fatídico de duas pessoas. Uma delas, exatamente Odete, vira um espírito obsessivo, passando a persegui-lo de formas medonhas, não oferecendo sossego ao viúvo que tampouco tem estrutura para suportar isso.

Morto Não Fala é calcado numa atmosfera de tensão, essencial para o desenho do percurso terrífico consideravelmente denso, com o retorno da esposa colérica, agora enquanto fantasma vingativo. Dennison Ramalho lida muito bem com os elementos à disposição, fazendo um uso potente dos jump scares, técnica tão vilipendiada em filmes de qualidade bem duvidosa, mas aqui instrumentalizada para sacudir o espectador circunstancialmente. A sucessão desses episódios bem edificados de susto, méritos da criatividade imagética e sonora, é saturada pela elaboração de ocorrências cheias de dubiedades. O protagonista é acossado violentamente, mas não pode ser definido necessariamente como vítima. Quem entra de gaiata nesse navio fantasma é Lara (Bianca Comparato), filha do falecido Jaime. Com a mãe convalescendo no hospital, é a única disposta a ajudar Stênio com as crianças, passando à prioridade dos alvos de Odete, essa assombração sedenta que atenta até contra seus filhos.

Do ponto de vista técnico, Morto Não Fala sai-se igualmente bem, com os componentes práticos sobrepujando em qualidade os digitais. A despeito da artificialidade visível, os rostos dos cadáveres feitos em CGI, contudo, causam uma bem-vinda estranheza, afinal de contas nem todos eles estão intactos, alguns se expressam com dificuldade por conta de hematomas e lacerações. Dennison Ramalho demonstra coragem ao colocar os dois pés no horror, não se contentando com sobressaltos banais, de efeito imediato e rapidamente diluído, pelo contrário, apostando na construção de um clima intenso o suficiente para reverberar instantes de maior impacto. Daniel de Oliveira, novamente, apresenta um desempenho notável como esse sujeito ambíguo ao ponto de permitir dúvidas entre o delírio e literalidade. Todavia, logo o cineasta dirime as incertezas, operando realmente na esfera do extraordinário para criar um espetáculo sangrento, em que a impertinência brutal dos que se foram gera instantes de pavor puro.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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