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Dona de uma inteligência ímpar e de uma imaginação não menos vasta, Matilda ousa se colocar contrária aos pais e professores para tentar mudar de vida.

Crítica

Matilda é uma personagem tão importante para o público britânico quanto a Emília, do Sítio do Pica-Pau Amarelo, é para o brasileiro. Por isso a insistência em tantas adaptações no cenário cultural – fora as versões para o teatro e para a televisão, há uma outra para o cinema, Matilda (1996), dirigida por Danny DeVito. Há inúmeras diferenças entre uma leitura e outra, mas provavelmente a mais evidente esteja apontada já no título dessa mais recente: trata-se, enfim, de uma trama repleta de danças e canções. Assim, Matilda: O Musical se coloca, ao mesmo tempo em que presta tributo à genialidade de Roald Dahl – autor também de, entre outros, A Fantástica Fábrica de Chocolate (1971) e de A Convenção das Bruxas (1990), ambos que também ganharam remakes recentes – como uma proposta original, que busca na inovação de um novo olhar um dinamismo inédito, mais apropriado às audiências modernas, enquanto pisca com o canto do olho para os admiradores de uma trama clássica e atemporal. Espécie de irmã-gêmea de outra órfã famosa – Annie, levada aos cinemas em 1982 e em 2014 – assim como essa encontra origem no imortal Oliver Twist, de Charles Dickens. Nos três casos, o sofrimento é o caminho necessário para a alegria. Dessa vez, ao menos, o estímulo visual se faz presente desde o começo, e este é um acréscimo que não pode ser desconsiderado.

Através de um prólogo que já alerta para o caráter cartunesco da narrativa, o espectador é confrontado com uma triste realidade: Matilda é uma criança nascida de um berço sem amor. Filha dos Wormwood (sobrenome que poderia ser traduzido de forma literal como ‘verme de madeira’), ela não só é desprezada pela mãe, que não reconhecia a própria gravidez até instantes antes do parto, como também pelo pai, que sonhava com um menino – e por isso só se refere à filha no masculino, mesmo anos após o nascimento dela. Levando uma vida na maior parte do tempo solitária – sua única companhia parece ser a senhora Phelps (Sindhu Vee, de Sex Education, 2020), dona da pequena biblioteca local – a garota se refugia nos livros e no aconchego do sótão para escapar das grosserias e maus-tratos familiares. Sua situação começa a mudar quando autoridades a identificam como ausente no sistema de ensino vigente, e obrigam seus pais a matriculá-la em uma escola. O que parecia ser um alento, pela possibilidade de estar em contato com uma nova – e mais amena – situação, logo se revela um novo tormento, visto que a diretora da instituição que passa a frequentar é ninguém menos do que a temida madame Trunchbull.

Matthew Warchus foi indicado ao Bafta por seu longa anterior, Orgulho e Esperança (2014) – que lhe rendeu também a Queer Palm no Festival de Cannes – mas nessa quase uma década que separa um trabalho do outro dedicou-se basicamente ao teatro e à televisão. Talvez por isso tenha sido chamado para comandar Matilda: O Musical, produção com notória inspiração nos palcos, e feito sob encomenda para uma plataforma de streaming – ou seja, sem passar pela tela grande. Esse, parece, é o maior dos seus defeitos, ter sido subestimado de tal forma pelos realizadores, que não apostaram em um grande lançamento que motivasse uma maior parcela do público. Afinal, o que se vê em cena é um grande espetáculo, não apenas pelos números musicais – alguns, como o do bolo de chocolate ou o do desafio dos acrobatas, são particularmente excitantes – mas também pela concepção visual (a direção de arte é nunca menos do que deslumbrante, seja por cenários inventivos, que partem de elementos conhecidos para propor tanto pesadelos como momentos de deslumbre, assim como a fotografia é livre em buscar novas possibilidades, alinhando um ambiente de histórias em quadrinhos com outros possíveis apenas nas imaginações mais criativas).

Outro grande acerto, importante ressaltar, está no elenco. A novata Alisha Weir, como a personagem-título, estreou no cinema no terror Don’t Leave Home (2018), e desde então havia feito apenas participações em séries ou curtas-metragens. Aqui, finalmente, tem sua primeira oportunidade como protagonista, uma chance em nenhum momento desperdiçada. A menina esbanja carisma e obstinação, alternando entre a leveza e uma conformada tristeza quando diante dos pais (o que não a impede de revidar à altura das agressões às quais é submetida, gerando boas piadas visuais), e a segurança e a certeza de estar fazendo a coisa certa quando colocada frente às injustiças escolares. Tanto é que acaba se colocando como igual com a grande vilã da história, uma irreconhecível – e nunca menos do que impressionante – Emma Thompson, como Trunchbull. Essa, numa composição de figurino e gestos que havia sido pensados inicialmente para Ralph Fiennes (!), é tanto medo como perigo, ameaça e recalque, oferecendo uma figura complexa e digna do interesse que desperta. Lashana Lynch, como a professora Miss Honey, surge com uma doçura que contrasta com a força e habilidade que havia demonstrado até então em seus papéis mais celebrados (como a nova 007 de Sem Tempo Para Morrer, 2021), enquanto Andrea Riseborough e, principalmente, Stephen Graham, se esforçam para ir além da piada que seus tipos incorporam, mesmo que nem sempre tenham espaço para tanto.

Ainda que o desfecho possa ser facilmente antecipado, Matilda: O Musical é um deleite de se acompanhar, seja para aqueles com o foco direcionado apenas às canções a às inventivas coreografias, como também aos preocupados com os dramas vividos pelos personagens. Conseguirá Matilda encontrar o afeto que tanto merece? Seus colegas terão seus direitos enquanto estudantes respeitados? A senhorita Honey irá receber o que lhe é de direito? A assustadora Trunchbull, ao transitar entre o caricato e o exagero, tanto diverte quanto provoca revolta, agindo na medida certa para envolver a audiência de acordo com o esperado. E quanto ao casal apaixonado das histórias inventadas, conseguirão transpor tanto desejo e afeto a um contexto menos ilusório e mais próxima da realidade (ao menos dessa vivida por estas figuras em cena)? São questões que vão se desdobrando sem pressa ou atropelo, mas acompanhadas de perto e com crescente atenção. Um feito que merecia ser apreciado com toda a pompa e circunstância que lhe é devida, mas que, independente do meio, deverá encontrar respaldo junto a um espectador não apenas curioso, mas ciente dos impressionantes feitos por aqui alcançados.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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