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Sinopse

Certo dia, Roy Pulver descobre diversos matadores de aluguel tentando assassiná-lo. Eles atingem o objetivo: o agente especial acaba morto, apenas para acordar de novo e reviver este dia centenas de vezes, com os mesmos inimigos à sua procura. Roy precisa compreender como foi parar num looping temporal, e de que maneira pode romper o ciclo.

Crítica

É curioso que, após tantas tentativas fracassadas de adaptar a lógica dos videogames ao cinema, um dos melhores resultados se encontre neste longa-metragem sem ligação com um game prévio. Mate ou Morra (2021) pega emprestado dos jogos a estrutura cíclica de níveis e obstáculos, ao invés de inserir personagens consagrados numa trama convencional. No caso, o agente especial Roy Pulver (Frank Grillo) acorda com dezenas de assassinos no seu encalço, em busca de uma recompensa generosa oferecida por sua cabeça. Pouco tempo depois, ele morre, apenas para despertar e reviver aquele dia, quando os perigos se encontram nos lugares idênticos, esperando que o jogador descubra a maneira de superá-los. A exemplo de um videogame, Roy consegue vence um inimigo, porém sucumbe ao próximo. O título original, Boss Level, indica a última fase onde o herói se confronta ao chefão. Antes disso, precisa eliminar adversários um por um e, caso morra, reinicia o percurso. O dispositivo do looping temporal, frequente nas produções de ação (Contra o Tempo, 2011, Looper: Assassinos do Futuro, 2012, No Limite do Amanhã, 2014), se torna a ferramenta ideal para aludir à jogabilidade.

Este mecanismo também permite ao diretor Joe Carnahan brincar com a representação da violência e a amoralidade do anti-herói. Ao contrário de narrativas grandiloquentes a respeito de homens corajosos se arriscando para poupar vítimas, este filme revela um sujeito egocêntrico preocupado somente em salvar a própria pele. A inconsequência das ações permite à equipe se deliciar com mortes grotescas, improváveis e divertidas, incluindo explosões, tiros, cabeças decepadas, corpos arrastados pelo concreto, quedas de edifícios. A vida se banaliza, expondo o prazer da carnificina tão comum ao cinema de horror. O projeto evita se levar a sério e oferecer um discurso a respeito da valentia e da humanidade: exceto pela tentativa do homem em fazer as pazes com o filho pequeno (provável concessão à lógica moralista dos estúdios), Roy começa a se divertir com seus sucessivos assassinatos, bolando planos ainda mais arriscados para chegar ao próximo nível. Seus adversários, convenientemente, resumem-se a estereótipos hilários, como os “gêmeos alemães”, a espadachim com sua frase de efeito (“Eu sou Guan-Yin, e Guan-Yin fez isso!”), a matadora enlouquecida de peruca colorida. Pouco importa ao espectador quem vive ou morre neste cenário, transformado numa brincadeira. A morte é simbolicamente vencida pela possibilidade de infinitos recomeços.

Talvez a melhor surpresa de Mate ou Morra provenha da desenvoltura de Frank Grillo no papel principal. O ator já recebeu diversas oportunidades de mostrar a habilidade para o cinema de ação, e algumas para comprovar os dotes cômicos, porém raramente pôde colocar ambos em prática na mesma obra, em posição de protagonista. Ele encontra o tom exato para que as cenas de perseguição funcionem dentro do propósito de ação, enquanto explora o absurdo do tom e das situações para reforçar o humor. Embora o roteiro exagere na tentativa de ser descolado e jovem (sobretudo pela insistente narração em off, do próprio Grillo), o ator extrai o máximo dos diálogos e das leves mudanças entre cenas repetidas. Ele transita entre o sujeito execrável, o pai carinhoso, o namorado conquistador e o brutamontes sem sentimentos em poucos minutos, durante uma única sequência. Atores em projetos semelhantes costumam cair na infantilização (John Cena), ou em composições vaidosas demais (Vin Diesel), mas Grillo compreende o teor da farsa, comprometendo-se a executá-la sem explicitar algo que deveria ser engraçado por si mesmo. Espera-se que os grandes estúdios aproveitem melhor esta habilidade rara em Hollywood.

Em contrapartida, o caráter excessivo das cenas e a metralhadora de piadas autorreferentes leva o projeto à beira da saturação - e talvez ultrapasse este limite, dependendo da tolerância do espectador. A abertura em animação 8-bit efetua uma ponte lúdica com os videogames, no entanto, os letreiros em formato de game e a incorporação de jogos no interior da narrativa desgastam a referência evidente, mais frutífera enquanto estrutura do que temática. A sequência dramática, envolvendo o dilema paterno e o relacionamento com a ex-esposa funciona como banho de água fria na história que se encaminhava em ritmo acelerado, colorido, alegre e sangrento. No papel feminino principal, Naomi Watts está desconfortável, como se não tivesse percebido que sua personagem constitui uma caricatura de cientista genial, ao invés de uma cientista real. Jemma aparenta existir num projeto diferente daquele de Roy Pulver, do “chefão" Clive Ventor (Mel Gibson) e dos matadores coadjuvantes. Cada vez que o roteiro retorna à intelectual brilhante, o ritmo se perde - até porque nem o filme, nem os personagens se importam de fato com a máquina criada por ela, sua origem ou composição. O mecanismo batizado Osíris, pertencente ao núcleo das relações familiares, soa como intromissão indesejada da verossimilhança num projeto que estava satisfeito em satirizar as regras do cinema comercial. As duas partes - dramática e paródica - convivem com dificuldade, sem permitir que uma contamine e enriqueça a outra. Ao final, soam como blocos forçados a a se relacionar pela montagem conflituosa.

Rumo à conclusão, o longa-metragem se suspende abruptamente, seja pela crença otimista numa sequência, seja porque os criadores nunca conceberam um encerramento ao mecanismo cíclico. Mate ou Morra lembra as músicas-chiclete de duas décadas atrás, encerrando-se com um fade durante as repetições do refrão cativante. Atrizes como Michelle Yeoh e Annabelle Wallis mereceriam personagens mais complexas do que os tipos introduzidos durante poucos minutos na história, mas afinal, quem exigiria complexidade de um projeto criado para acenar à diversão de um game de tiros? Trata-se do sintoma de um cinema de estúdio que insiste em divertir pela multiplicação de piadas nos diálogos, na imagem e nas atuações, visando um público jovem com taxa de concentração limitada, que talvez troque de canal ou pegue o celular caso fique entediado por alguns segundos - vale lembrar que a obra foi lançada na televisão em seu país de origem. Nestes tempos pop e velozes, o elenco interpreta paródias de personagens - o galã de ação, o vilão maluco que pretende destruir o mundo, as asiáticas belas e mortais -, numa narrativa que zomba da ação, ridiculariza o looping temporal e ri de si própria. O filme parece elaborado tanto por artistas quanto por empresários e marqueteiros, preocupados em ter suas frases, gifs e memes compartilhados nas redes. Para o bem e para o mal, oferecem um cinema adequado à época de conteúdos virais.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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