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Sinopse

Garotas rebeldes se destacam num internato católico bem num momento de escassez por conta da guerra.

Crítica

Um dos aspectos mais interessantes do cinema da italiana Alice Rohrwacher é a atenção dispensada à infância/juventude precocemente pressionada por amarras sociais. Nos excelentes Corpo Celeste (2011) e As Maravilhas (2014), é a religiosidade que exerce essa força. E ela atinge protagonistas que não dispõem de ferramentas para lidar com repressões, transferências de culpa e outras estratégias utilizadas pelo cristianismo a fim de manter as suas ovelhas obedientes e circulando nos cercadinhos delimitados por pastores de batina. Em Lazzaro Felice (2018), talvez o seu filme mais conhecido, ela extrapola o realismo e desenvolve uma parábola abertamente religiosa sobre um garoto que compensa a pouca inteligência com uma bondade incomum (digna dos santos). No curta-metragem Le Pupille, essa grande realizadora continua explorando a intersecção entre uma infância desprotegida e as estruturas superiores que tentam corromper qualquer naturalidade em função de dogmas e outras algemas. Mas, dessa vez ela elabora, com ternura, uma crítica de contornos lúdicos. Na verdade, estamos diante de um conto natalino, mas sem excessos de idealização ou mesmo os finais conciliatórios/alegres.

Pode-se dizer que o encerramento de Le Pupille é feliz? Claro, afinal de contas, nele as órfãs de um internato aprendem uma lição emancipatória: a solidariedade é muito mais valiosa do que as recompensas abstratas oferecidas por um conjunto de regras elaboradas em torno da simbologia de um corpo pendurado na cruz. O filme é ambientado na Segunda Guerra Mundial, momento em que homens são raridade nas ruas da Itália, algo enfatizado na ótima cena do presépio vivo recebendo pedidos de oração por sujeitos transformados em soldados pela ocasião. As protagonistas são as internas do orfanato de paredes carcomidas comandado com mão de ferro pela Madre Superiora interpretada por Alba Rohrwacher (irmã da cineasta). Construindo uma atmosfera claramente sensível ao olhar das crianças, Alice demonstra empatia pela inocência prestes a ser corrompida, senão pelo conflito global, por protocolos que fazem as pequenas se sentirem pecadoras sem mesmo qualquer falha à vista. Estamos diante de um filme de aprendizado, daqueles geralmente arrematados com uma “moral da história”. Mas, a cineasta brinca até mesmo com esse modelo ao fazer as suas crianças questionarem essa moral.

Entre as meninas do elenco mirim, quem se destaca é a ótima Melissa Falasconi, a intérprete da perseguida Serafina. Aliás, ela é a única criança de Le Pupille que impõe a sua subjetividade – as demais se manifestam por características específicas, assim sendo mais tipos do que necessariamente personagens. Jogando com as noções de pecado e dádiva, Alice Rohrwacher mostra a criança causando alvoroço ao tentar reparar o engano da sua fantasia natalina: ao pegar o coração bordado do chão, bem quando todas estavam ouvindo o rádio sobre as notícias de guerra, ela involuntariamente faz com que a ladainha do repórter dê lugar a uma música popular de amor. É o suficiente para ser taxada de má pela Madre Superiora e ocasionar uma lavagem geral das línguas que pronunciaram coisas supostamente imorais como “beijo na boca”. Quem determina o que ofende a Deus? Os moralistas, claro. Aos olhos das crianças, há religiosas boazinhas (vide a que pinta um bigode) e algumas absolutamente maldosas. O filme assume esse simplismo da perspectiva inocente, mas injeta nuances nesse pequeno retrato da realidade em crise. Por exemplo, pode a mulher pedir oração para alguém simplesmente deixar de amar?

Le Pupille é um filme particularmente sarcástico, sobretudo por colocar um filtro de pureza entre o espectador e as suas nada inocentes críticas sociais. Serafina é a peça-chave dessa discussão envolvente e cândida sobre bondades/maldades, pois impõe em determinando momento à Madre Superiora a escolha entre o exercício da política religiosa e a manutenção da palavra. Alice Rohrwacher faz o movimento eloquente parecer uma traquinagem natural, apresentando o revide quase automático de uma criança rompendo algo maior do que ela, basicamente, ao utilizar a opressão contra ela própria. Valeria Bruni Tedeschi surge lá pelas tantas com seu pedido inusitado e, também, com o bolo causador da discórdia (feito com 70 ovos, um exagero em tempos de guerra). Há muito nesses pouco mais de 35 minutos do filme indicado ao Oscar de Melhor Curta-metragem (live-action) em 2023: do elogio da simplicidade das crianças à necessidade de deslocar a solidariedade ao topo das prioridades humanas (ainda mais em tempos de guerra). Dentro da já muito consistente obra de sua realizadora, ele ocupa um espaço palatável pelo tom pueril, porém não menos consciente do que nos perverte desde bem cedo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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