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Sinopse

Lazzaro é um garoto pobre e pouco inteligente, mas extremamente bondoso. Explorado pelos familiares, faz trabalhos forçados diariamente, além de colaborar com a marquesa, proprietária das terras onde vivem. No entanto, após uma tragédia, Lazzaro retorna à vida no século XXI. Ele não compreende mais a lógica deste mundo, mas pretende reencontrar a sua família e viver como antigamente.

Crítica

Num primeiro momento, Lazzaro Felice se apresenta como um ensaio peculiar da subserviência de camponeses humildes a uma “nobre” marquesa, latifundiária e exploradora. Na propriedade italiana cuja principal fonte de renda é o tabaco, o tempo parece indeterminado, especialmente pelas relações trabalhistas semelhantes às dos anos de escravidão. Não fossem alguns elementos, tais como o telefone celular e outros aparelhos eletrônicos, facilmente a trama do longa-metragem de Alice Rohrwacher poderia ser confundida com algo ambientado em outro século. O protagonista é Lazzaro (Adriano Tardiolo), destoante da paisagem humana da região por sua bondade e resiliência incomuns. Quebrando o fluxo que rege ancestralmente a localidade, ele não se aproveita de alguém, ao contrário, pois explorado em virtude dessa vontade intermitente de fazer o bem ao próximo. A religiosidade surge na narrativa como argamassa do insondável. O povo recorre à mitologia dos santos sofredores para espelhar a sua miséria e, assim, seguir em frente, entorpecido de lendas.

Portanto, os símbolos escondidos na residência da marquesa são apenas sintomas das crenças populares disseminadas através dos séculos, inclusive, para "explicar" abismos de classe. Não à toa, diversos personagens de Lazzaro Felice possuem nomes bíblicos, a começar pelo garoto de ingenuidade cativante, batizado como aquele a quem, de acordo com as sagradas escrituras do cristianismo, Jesus ressuscitou para demonstrar a glória de Deus. A realizadora investe de maneira excepcional na construção de um painel comunitário marcado pela vilania asquerosa da subjugação alheia, como se tal conduta fosse condição essencial para sobreviver num mundo dominado metaforicamente por lobos. Aliás, a presença, de fato, das criaturas lupinas, sempre à espeita, é uma ponte lírica com a maldade à qual Lazzaro é totalmente refratário. Porém, adiante, a ligação com os animais se mostra menos condicionada pela lógica convencional, porque justamente um deles testemunha (ou serve de emissário?) ao milagre que deflagra o caráter fantástico do filme.

Alice Rohrwacher utiliza com habilidade a geografia a fim de ambientar a sua parábola, enriquecida por um discurso social bem fundamentado em processos históricos ligados, também, às crenças. Montanhas, encostas, vales e demais espaços são descortinados com o intuito de torna-los indispensáveis, uma moldura sintomática do descolamento da estrita realidade. Adriano Tardiolo constrói o protagonista como uma figura cativante por sua negação ontológica da maldade em prol da disseminação do bem. Ele encontra um companheiro insólito no burguês aparentemente revoltado com sua origem, porém mais interessado em afrontar a autoridade da mãe. É justamente Tancredi (Luca Chikovani), o marquesinho, que acentua a dimensão lendária, verbalizando instâncias que Lazzaro assume ingenuamente como literais, vide a lorota acerca da possibilidade dos dois serem meios-irmãos, e o estilingue malfeito, transformado pelo poder da palavra numa arma importante. Lazzaro Felice é um filme engenhoso, no qual as ricas camadas vão se entremeando.

A segunda metade, principiada por um salto temporal considerável que, por sua vez, é pontuado pela ressurreição de Lazzaro, apenas confirma a observação melancólica da pobreza como um resíduo da ganância insidiosa de alguns. Libertados da escravidão, os antigos moradores agora são mendigos, sobremaneira largados à própria sorte por um sistema que prega publicamente a justiça, mas não exatamente a de cunho social. Há um quê de Feios, Sujos e Malvados (1976) nessa constituição marginal na urbe. No novo cenário, o protagonista tende a se tornar um tipo ainda mais trágico, já que dono de um altruísmo discrepante do entorno muito depauperado. Alice Rohrwacher alia as esferas fantástica e realista, criando um conto moral consistente, no qual a virtude de uns serve à redenção dos menos iluminados. O protagonista levanta e anda, assumindo, de forma orgânica e cinematograficamente sofisticada – vide a beleza dos planos e da construção narrativa –, a função do martirizado que purifica. Difícil esquecer o semblante luminoso desse cordeiro.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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