Crítica


8

Leitores


3 votos 8.6

Onde Assistir

Sinopse

Em 2018, Rodrigo Alexandre da Silva caminhava pelas ruas do Rio de Janeiro com um guarda-chuva. Neste dia chuvoso, ele pretendia se encontrar com a esposa. No entanto, foi morto com três tiros por policiais que confundiram o objeto com uma arma.

Crítica

Existe um componente de banalidade fundamental a este curta-metragem. A narrativa se passa durante a simples caminhada de um homem pela Ladeira Ary Barroso, na Zona Sul do Rio de Janeiro, em 2018. A precisão quanto ao nome da rua e os fatos seguintes esclarecem a identidade de Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, baleado pela polícia que teria confundido seu guarda-chuva com uma arma. No entanto, o diretor Moisés Pantolfi faz questão de apresentar um protagonista comum, cujo caráter universal reforça a capacidade de identificação com o espectador. O cineasta evita antecipar o crime por meio de cenas de suspense com música espetacular. Pelo contrário, permite que os tiros cheguem de modo inesperado, como devem ter ocorrido, de fato, à vítima. O ponto de vista se confunde com aquele do rapaz negro, ao passo que os policiais jamais aparecem. O filme foge à armadilha de ressaltar as intenções dos policiais, ou a reação destes após os disparos - o discurso ignora a subjetividade dos criminosos, o que talvez equivalesse a desculpá-los, ou a atenuar a culpa pelo gesto (como ocorre em Macabro, 2019). Existe apenas um personagem visível em cena: o transeunte com o objeto na mão, sendo baleado. O fato constitui uma atividade comum e um dilema excepcional. O assassinato se torna ainda mais absurdo pela ausência de motivação plausível - e haveria justificativa para alvejar um indivíduo?

O aspecto racial é bem retratado pelos traços da animação. Ao invés de observá-lo à altura dos olhos, onde o espetador poderia deduzir sentimentos e intenções, permanecemos junto ao solo, em contra-plongée. O protagonista é visto de baixo para cima, aumentando a proporção de pés e pernas em relação ao torso menor, e à cabeça pequena. Os traços correspondem àqueles de um homem negro, porém a minimização das expressões faciais ressalta o ato físico e externo de andar. Rodrigo apenas se locomovia. O ângulo escolhido contribui a perceber o guarda-chuva num gesto corriqueiro, longe de agressividade, e improvável de ser confundido com uma arma. Pantolfi adota uma postura ideológica através da estética, primeiramente, ao se posicionar junto da vítima, e depois, ao reforçar a sua inocência. O som alto dos passos pelo asfalto se contrasta com a ausência de ruídos ao redor, ou seja, sequer havia intensa movimentação capaz de confundir os atiradores. Por meio destas ferramentas, o drama joga luz ao racismo estrutural, apontando ao extermínio de pobres e negros pelas mãos do Estado. O principal motivo para Rodrigo ter sido morto foi sua raça e o bairro por onde transitava. Quantas pessoas brancas já foram “acidentalmente" confundidas com bandidos pelas forças policiais, e alvejadas enquanto carregavam um guarda-chuva? Felizmente, o filme aborda o tema sem letreiros explicativos, nem dados a respeito da violência policial ou fotos reais: a ficção permite tornar a história menos específica, passível de compreensão em qualquer cultura e região.

A linguagem da animação contribui ao olhar crítico: os fortes traços do desenho se opõem ao realismo, fortalecendo o distanciamento dos fatos. Apesar do nome da rua, o cenário a seguir remete a uma via qualquer, sem fatores sublinhando a cidade nem símbolos para precisar a data. O recurso corresponde a um forma de respeito à vítima e aos familiares. Teria sido eticamente contestável instrumentalizar a morte para erguer uma mensagem de denúncia, desprezando o impacto emocional do projeto na vida dos familiares - algo comum em diversos documentários que limitam seus personagens à condição de objetos de estudo. Através da animação de traços fantasiosos, da escolha pelo preto e branco e da ação brusca (os tiros provocando um flash que elimina os traços da imagem, forçando-os a se recomporem), recusa a linguagem documental e confere liberdade à criação fictícia, ainda que partindo de fatos. Havia diversos limites éticos delicados neste caso, sobretudo em função da urgência e da complexidade sociopolítica. Ora, Pantolfi não dá um passo maior do que seu projeto poderia cumprir. Ao transformar a base do guarda-chuva num ponto de interrogação, convida ao questionamento daquilo percebido como mera fatalidade, ao invés de nomear os culpados e sugerir maneiras de superar o conflito. O autor se responsabiliza por conferir estranhamento a uma tragédia que, em 2021, já saiu dos jornais, sendo substituída por tantas outras semelhantes. O projeto também honra a memória de pessoas cujo assassinato se esquece com velocidade espantosa pelo imaginário coletivo.

Além disso, o formato explora com eficiência a duração proposta pelo diretor. Ele oferece tempo ao protagonista para andar em silêncio, sozinho, enquanto a chuva se forma nos céus - indicando a proximidade da chuva, justificando a presença do guarda-chuva e aludindo metaforicamente à tragédia. Quantos autores conseguem, no intervalo de um minuto, abrir espaço à contemplação, ao tempo dilatado, à percepção dos sons altos? Ao final, as vozes sobrepostas e aceleradas dos noticiários representam tanto a repercussão da história quanto a facilidade com que se acumularam e, no final, produziram mais ruído do que reflexão. Interrogação (ou Psicopata Legalizado) (2019) questiona a abordagem impessoal de um caso humano, além de nossa brutalização diante de um crime bárbaro, perdendo a capacidade de empatia. O roteiro costura a breve apresentação ao clímax, deixando fora de quadro, no desenvolvimento, os questionamentos cabíveis ao espectador - onde se posicionava a polícia? Este foi o primeiro “erro" dos responsáveis? Foram punidos pelo ato? A escolha de retirar as causas e consequências de uma ação tão grave aproxima a obra de um conto absurdo, surreal, e em consequência, adequado à realidade brasileira. O cinema de gênero, o terror, a animação e a fantasia se revelam linguagens preciosas para retratar um mundo virado pelo avesso. 

Filme visto online no VI Cine Jardim: Festival Latino-Americano de Cinema de Belo Jardim, em agosto de 2021.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *