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Sinopse

Um retrato dos anos de Glauber Rocha exilado na Itália, entre 1970 e 1976.

Crítica

O cineasta Glauber Rocha era um daqueles artistas indissociáveis de suas obras. Alguns dirão que essa operação de desligar virtualmente o criador da criatura é sempre impossível, algo que rende boas reflexões. Todavia, a despeito dos que apresentam pensamento político/ideológico quase contraditório, tendo em vista suas realizações – o Clint Eastwood republicano, cultor das tradições, contador de histórias absolutamente humanas, empáticas e com anseios por liberdade individual, vem à mente –, há os que parecem integralmente impressos no resultado de seus esforços. Talvez por compreender esse cineasta brasileiro exatamente como parte dos que pulsam em cada fotograma de seus filmes, o cineasta César Meneghetti utiliza justamente as reminiscências de uma produção para fazer um retrato parcial do homem que a gestou e a pariu. Glauber, Claro se debruça sobre os elementos e as pessoas que permitiram a existência do pouco debatido Claro (1975), longa feito na Itália que mistura linguagens para mostrar Roma como o epicentro do nocivo imperialismo.

São reveladoras, ainda que não tragam muito de novo, as entrevistas com membros da equipe de Claro. Técnicos, elenco, críticos e grandes nomes do cinema italiano falam das circunstâncias que permitiram a existência desse poema subversivo, avesso ao hegemônico. César, assim, nos confere acesso privilegiado à intimidade não apenas do processo, mas também do que o alimentou. Várias possibilidades de abordagem tentam conviver harmoniosamente em Glauber, Claro. Existe o retrato do latino-americano exilado num país europeu cultural e politicamente efervescente; a rememoração de homens e mulheres que encaram as próprias versões joviais, atravessados pelo saudosismo; a possível ponte entre aquele tempo e o nosso, igualmente conturbado por uma luta ferrenha entre espectros polarizados do cotidiano; a tentativa de compreender o cenário em que aquilo tudo aconteceu; o apontamento de uma liberdade artística contraposta pelas marcas históricas da cidade que abriga símbolos ocidentais, tais como o Vaticano. E há pouco tempo para tanta coisa.

Glauber, Claro lança luz sobre um período pouco estudado da vida de Glauber Rocha. A vivência na Itália, entre 1970 e 1976, resultou no filme e nas conexões como figuras importantes, tais como Marco Bellocchio e Bernardo Bertolucci, gigantes que falam da admiração pelo colega. Pena que, nessa tentativa hercúlea de confabular a respeito de várias engrenagens e vieses complexos, César Meneghetti fique relativamente disperso entre o retrato elegíaco e o simples acúmulo de informações. Ele permanece eventualmente perdido numa fronteira não tão tênue, encarregada de delimitar a distância medida do caráter meramente informativo à alternativa de gerar várias reflexões a partir dele. Como se está falando essencialmente de cinema, o realizador lança mão de alguns ícones para pontuar as transições, vide os planos intermediários das moviolas – equipamento analógico de montagem –, o que dá ao filme um indício de fetichismo (saudade?) não desdobrado de outro modo. Acaba sendo realmente um artifício ilustrativo, apenas para preencher as lacunas.

É bonito o processo de termos uma parte de Glauber revelada pela memória alheia. Antigos colaboradores mencionam métodos pouco ortodoxos e circunstâncias insólitas – como o brasileiro afugentando mafiosos ao passar-se por líder de um perigosíssimo grupo de revolucionários sul-americanos –, à medida que se reencontram. Glauber, Claro poderia ser sobre utopias perdidas, a respeito de como o “sistema” se apropriou de componentes antes consideradas subversivos, isso em meio aos múltiplos recortes com os quais flerta em sua enxuta duração. Se trata de um documentário que abre numerosos caminhos, deixando ainda uma quantidade considerável de outros restritos às frestas das observações, demasiadamente indeciso quanto a o quê privilegiar. De toda forma, opera um resgate/festejo de vital importância, adicionando mais um tijolinho ao papel histórico-artístico de Glauber Rocha, sujeito de comportamento vulcânico, cujo messianismo verbal e físico advinha de uma inflamável soma de inconformidade e clareza, algo que nos faz muita falta atualmente.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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