Crítica


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Sinopse

Em meio a uma crise, a funcionária de um banco encontra uma fonte enorme de dinheiro saindo dos esgotos da própria casa.

Crítica

Especialmente nos primeiros três quartos de Fortuna Pelos Canos, o principal é a tensão nutrida de antagonismos entre marido e mulher. Sarita (Saiyami Kher) é uma bancária que labuta arduamente todos os dias para garantir o sustento da casa. Seu cônjuge, Sushant (Roshan Mathew), é um folgado que pouco ajuda nesse sentido de contribuir economicamente à família. No princípio, o desenho dessa configuração tem alguma criatividade, como quando, para demonstrar a caráter relapso do homem, o filho conta suas toalhas molhadas espalhadas pela casa. Logo, porém, as circunstâncias ficam mais banais, sobretudo a partir do momento em que dinheiro começa a brotar do ralo da cozinha. Diariamente, nas madrugadas, Sarita colhe a grana que vem junto com o esgoto, numa metáfora visual para lá de evidente, mas funcional, já que os valores são oriundos da acumulação indébita do vizinho de cima que assessora um político corrupto. Aliás, isso é o estopim de uma série de coisas que tornam a contenda doméstica mais problemática, com várias desconfianças e afins.

Por mais que a repentina desvalorização das notas graúdas, medida governamental que visa combater a ação de grupos criminosos, torne a troca das cédulas urgente, o núcleo da trama continua sendo a pressão entre a “trabalhadora” e o “vagabundo”. O cineasta Anurag Kashyap opta por demarcar com tintas carregadas esses estereótipos, muito eventualmente permitindo aos personagens saírem provisoriamente do registro saturado. Sarita, por exemplo, parece ter validada a sua ânsia desmedida por segredo, porque o marido não fez nada recentemente para merecer a sua cumplicidade. Já Sushant continua sendo descrito como sujeito que pouco faz, cujo papel é limitado por suas apatia e falta de vontade. Tanto que ela quita uma dívida dele para proteger a família, mas não há a construção de uma genuinidade quanto ao rescaldo do amor que os uniu no passado. Levando em consideração que essa dinâmica conjugal é entendida como a espinha dorsal do filme, curioso que não fique bastante claro se a esposa realmente sente algum pesar diante da iminente falência desse vínculo.

Fortuna Pelos Canos ensaia colocar uma questão sócio-política na crise marital. A retirada das notas altas de circulação promove agitação no país, faz com que os turnos de Sarita sejam exaustivos no banco e permitem o surgimento do chantageador. Falta à narrativa consistência para trabalhar todos esses elementos organicamente. No trajeto errático, circunstâncias que parecem potencialmente definidoras são dispostas com displicência, vide a fofoca que pode determinar o fim do enlace central. Mesmo que apresente personagens carismáticos dentro de uma conjuntura apelativa ora ao insólito, ora ao mais corriqueiro dos contratempos domésticos, o longa-metragem padece exatamente por uma dificuldade crescente de equalizar os seus tantos componentes. Martela desnecessariamente uns e deixa outros a mercê da quase total ineficiência. A musicalidade própria às produções de Bollywood – a indústria indiana de cinema – aparece em ocasiões esparsas. Numa, Kashyap celebra o primeiro-ministro local com um número que infelizmente dura pouco.

Todavia, o mais acintoso dos problemas de Fortuna Pelos Canos, drama que ensaia descambar à seara do conto moral, é justamente o clímax relativo à resolução matrimonial. Embora Sarita seja a protagonista do filme, que grande parte das ações do mesmo passem por suas tomadas de decisão, inexplicavelmente é Sushant quem “salva o dia”. No fim das contas, ele assume repentina e artificialmente a posição de “sabe tudo”, esclarecendo imbróglios às autoridades e tratando de recuperar canhestramente a posição de provedor que novamente coloca pingos nos is. O desfecho está longe de ser uma crítica ao sistema patriarcal, pelo contrário, pois há uma celebração desbragada desse sujeito que passa a ter relevância diante da plateia tão logo faça o básico esperado de alguém independente. Até o frágil trauma da mulher, oriundo de um insucesso nos palcos, serve tão e somente para o homem “brilhar” num deslocado episódio de desprendimento da própria inércia para mirar verdadeiramente às angústias da esposa. Essa guinada é gritante ao ponto da recompensa derradeira estar nominalmente atrelada a ele, enquanto ela é apagada após ter sustentado a trama nas costas.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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