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Sinopse

Filhos do Mangue: Um homem aparece ferido e sem memória em uma comunidade ribeirinha. A população o acusa de roubo e tenta, em vão, que ele recupere a memória e devolva o dinheiro. Em um julgamento popular vem à tona uma trama que envolve desvio de verba pública, exploração da prostituição e de violência doméstica.

Crítica

Integrante do grupo de cineastas que ajudou a revigorar o cinema brasileiro nos anos 1990, depois da famigerada Era Collor, Eliane Caffé demonstrou ao longo da carreira uma propensão a misturar ficção e documentário. Nos seus longas-metragens são comuns os personagens inseridos em certas comunidades (ou realidades) se autointerpretando na interação com atores e atrizes representando papeis distantes de sua realidade – como vemos em Narradores de Javé (2003) e Era o Hotel Cambridge (2016). Algo semelhante acontece em Filhos do Mangue, filme selecionado à principal mostra competitiva do Festival de Gramado 2024. Tudo começa com um homem desmemoriado aprisionado pelos vizinhos indignados por conta de um golpe. Pedro Chão (Felipe Camargo) não faz ideia de o porquê as pessoas estão estressadas ao seu redor. Amarrado e sem qualquer pista a respeito de si próprio, ele se transforma no alvo de uma coletividade furiosa. Os demais ribeirinhos o acusam de fugir com o dinheiro de um esquema escuso que beneficiaria a cooperativa da comunidade. Esse julgamento improvisado remete diretamente à situação semelhante na obra-prima alemã M: O Vampiro de Dusseldorf (1931). Mas, diferentemente de Fritz Lang, Eliane não parece interessada em avançar nessa história híbrida considerado a hipocrisia do grupo ávido por achar culpados que aliviem os seus pecados.

Pedro Chão vira uma página em branco. Sem memórias, o protagonista que transita um tanto sorumbático pela paisagem paradisíaca é antes ressignificado pelos flashbacks que apresentam ao espectador a sua personalidade pregressa. Enquanto ainda está amarrado e sendo alvo dos insultos alheios, ele nos parece uma vítima em potencial. No entanto, os pequenos vislumbres do passado explicam as razões das bravatas dos ribeirinhos. Pedro Chão batia na esposa, tratava os demais como se fossem detritos descartáveis e ganhava dinheiro fomentando a exploração de mulheres para uma rede internacional de prostituição. Em suma, era um sujeito odioso. Eliane Caffé novamente aposta na espontaneidade dos diálogos, no trabalho conjunto de atores profissionais e pessoas da comunidade que se encarregam de uma genuinidade interessante. A câmera sempre muito colada aos corpos chama a nossa atenção aos gestos pequenos, aos olhares significativos, aos rompantes emocionais que manifestam indignações e frustrações. A fotografia assinada por Pedro Rocha aposta nesse tensionamento visual para injetar adrenalina numa trama que rapidamente deixa de ser sobre um golpe e passa a discutir a possibilidade da segunda chance. Em meio à errância do protagonista, assuntos vêm à tona, sendo os principais deles a violência doméstica, a exploração do paraíso e a necessidade de emancipação feminina.

Em vários momentos do longa-metragem vemos mulheres vitimadas por homens abusivos. E elas encontram salvação na sororidade. Eliane Caffé interrompe bruscamente a linha principal da narrativa a fim de mostrar uma reunião feminina em que certos ideais e posicionamentos são discutidos. Nessa assembleia, os enunciados são fortes e as reações das vítimas envolvidas são entrecortadas por tristeza. A cena é emocionalmente potente. No entanto, esse aparte que o filme faz para discutir violência doméstica de modo mais frontal soa pouco orgânico, um desvio provocado artificialmente como se rasgasse de modo inconsequente o filme para ter o bônus de um discurso empoderador. Outros temas citados ao longo de Filhos do Mangue são pouco desenvolvidos, principalmente a precarização do trabalho ribeirinho e o avanço de um turismo predatório focado na exploração das belezas naturais e das pessoas nativas em prol de interesses perversos. O sujeito agressivo que cobra da comunidade o dinheiro da maracutaia desaparecido não chega a significar um ponto de pressão suficientemente forte para adicionar tensão a essa atmosfera repleta de questionamentos meio soltos. Enquanto isso, a trajetória individual de Pedro Chão se torna menos importante em si do que como catalisadora das coisas acontecendo ao redor. E uma vez todo o cenário posto, o enredo tenta promover um mergulho introspectivo.

Depois de mostrar Pedro Chão enfrentando dificuldades para se aproximar das pessoas que ele machucou antes de perder a memória, de citar brevemente os efeitos colaterais das conexões escusas que o sujeito e outros personagens estabeleceram para vencer a miserabilidade, Filhos do Mangue passa a navegar numa calmaria pouco propositiva. Sem dar destaque à importância (sequer a representativa) dos personagens secundários, Eliane Caffé se concentra no protagonista que tenta olhar para dentro de si, mas encontra apenas o eco característico aos espaços vazios quando ele vasculha a câmara da própria memória. Porém, a realizadora nem consegue fazer dessa imersão em si uma experiência suficientemente instigante e tampouco dá conta de desenvolver os dilemas da comunidade que aos poucos acolhe a página em branco na qual se transformou Pedro Chão. Quanto às interpretações, Felipe Camargo oscila entre a presença absorta em dúvidas existenciais e a personalidade em formação de um sobrevivente que não pode esperar as lembranças voltarem para pensar em coisas como a subsistência. Especialmente da metade para o fim, o personagem de Roney Villela (que parecia importante, até pela carga de dubiedade que o ator atribui a ele), é restrito à sombra de uma meditação às vezes cansativa que recorre à paisagem para almejar certa transcendência. Isso enquanto vários assuntos importantes são abordados rapidamente em meio às mudanças abruptas de direção.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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CríticoNota
Marcelo Müller
5
Robledo Milani
5
MÉDIA
2.5

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