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Sinopse

Um homem leva a namorada para conhecer seus pais. Porém, um desvio inesperado transforma a viagem do casal numa jornada terrível ao encontro da fragilidade psicológica e da mais pura tensão.

Crítica

“Estou pensando em acabar com tudo”. Uma jovem repete a frase para si mesma, diversas vezes, durante uma viagem de carro ao lado do namorado Jake (Jesse Plemons). Pelo contexto, a súplica diz respeito ao término do relacionamento com o rapaz que ela conhece pouco, e cuja ideia de um futuro juntos traz mais angústias dos que prazeres. No entanto, conforme presenciamos o estado de espírito desta mulher questionadora, a frase também sugere a possibilidade de terminar com tudo, incluindo a própria vida. O aceno ao suicídio impregna cada cena desta obra obcecada pela morte enquanto horizonte inevitável da condição humana. Ao longo de uma curta viagem, seres humanos adoecem, porcos apodrecem vivos, ovelhas perecem na neve, e sobretudo, histórias de amor se desfazem. “Tudo tem que morrer”, declara uma voz sábia – o que vale tanto para os seres vivos quanto para os seus sentimentos. Novamente a mesma palavra, “tudo” (no inglês, “things” e “everything”), significando uma universalidade da destruição. Dentro deste universo niilista, os personagens, assim como o próprio filme, se implodem discreta e silenciosamente.

Não há um único elemento acolhedor ao longo viagem. Neva demais lá fora e faz muito frio. A mãe dele (Toni Collette) se mostra artificialmente sorridente, enquanto o pai (David Thewlis) tem falas grosseiras e moralistas. O cachorro tem cheiro forte, e se chacoalha (literalmente) sem parar. Os papéis de parede, a porta arranhada, o porão assustador, os barulhos do andar de cima, criam um ambiente de profundo desconforto, tanto para a protagonista sem nome quanto para o espectador. A imprensa já começa a trazer as primeiras leituras do filme enquanto metáfora da depressão, da bipolaridade, da síndrome do pânico, da esquizofrenia. No entanto, nossa vontade de aplicar diagnósticos imediatos a sintomas complexos impede a aceitação de uma experiência propositadamente difícil. O diretor e roteirista Charlie Kaufman, a partir do livro de Iain Reid, aborda certo mal-estar da civilização, uma sensação de não-pertencimento, de desgosto e descontentamento de si próprio. Todos os personagens do filme são infelizes, seja aquelas efetivamente identificáveis como reais – Jake, os pais dele, a protagonista física-poetisa-filósofa-pintora -, seja os personagens-símbolos, passíveis de leitura enquanto metáforas ou pesadelos – a voz masculina que dispara enigmas ao telefone sob codinome feminino, a vendedora de sorvetes, o zelador solitário.

Em alguns momentos, a protagonista olha para fora do carro, desesperada, encarando a câmera e o espectador. Ela deseja fugir, mas não tem motivos racionais para legitimar este ato, por isso se contém. Afinal, Jake é um cara legal. Ela não teria o direito de estar infeliz, por isso acata com os rituais de um relacionamento natimorto. Há algo muito sedutor no estranhamento deliberado dos filmes criados por Charlie Kaufman, que nunca acontecem apesar do espectador, e sim para ele. Alguns grandes autores do cinema, muito orgulhosos de suas proezas técnicas e reviravoltas narrativas, demonstram prazer em alienar uma parcela do público, considerando-se mais inteligentes do que os interlocutores. No entanto, a estranheza de Kaufman busca agradar, à sua maneira, pelo humor absurdo equilibrando a melancolia fúnebre, e pelas dicas fornecidas apenas aos olhos do espectador (a montagem paralela com o zelador, a narração em off, o quadro da protagonista na casa dos pais de Jake). O autor possui um universo narrativo muito particular, entretanto ele nos convida, com insistência, para adentrar este mundo e partilhar da experiência do protagonista. O filme jamais soa arrogante em sua abordagem, apenas exageradamente preocupado em agradar, ao ponto da passivo-agressividade – como os pais de Jake, diga-se de passagem.

No entanto, replicando a estrutura de Sinédoque, Nova York (2008) e Anomalisa (2015), chega um ponto em que as estranhezas simbólicas fagocitam a narrativa e monopolizam as imagens. Quando escreve roteiros para entregar a outros diretores, Kaufman insere seu universo psicológico e fabular dentro de uma narrativa verossímil (vide os excelentes Quero Ser John Malkovich, 1999, e Adaptação, 2002). Para si mesmo, em contrapartida, escreve obras ainda mais rocambolescas, nas quais a premissa original é gradativamente abandonada em prol das metáforas que sucedem umas às outras, vertiginosamente, em tom cada vez mais espetacular e barroco, possibilitando tantas leituras quanto houver espectadores. Estou Pensando em Acabar com Tudo acena a interpretações interessantes acerca do consentimento dentro de um relacionamento, da solidão e do medo da finitude. Ele também se presta à leitura da experiência do tempo enquanto fenômeno cíclico e suscetível às nossas projeções e pulsões. “Não há realidade objetiva, sabia?”, explica Jake, antes de lembrar que não há cores no universo, apenas em nossas mentes. O diálogo intelectual entre dois namorados tão inteligentes quanto prepotentes desaparece rumo ao final, quando o autor mergulha em seu próprio país das maravilhas, seu labirinto de imagens de dança, música e teatro, num caos ostensivamente colorido após tantas cenas sombrias e monocromáticas.

Para a ótima Jessie Buckley, cabe o desafio de interpretar uma personagem não-realista dentro de um universo milimetricamente concebido para oprimi-la. Ela guarda certo parentesco com as personagens de Jennifer Lawrence em Mãe! (2017), de Naomi Watts em Cidade dos Sonhos (2001) e mesmo de Shelley Duvall em O Iluminado (1980) – sobretudo no terço final, quando o projeto manda às favas qualquer tentativa de coerência interna e abraça a liberdade da poesia desenfreada. Como dar corpo a um símbolo? Buckley imprime um desconforto de fácil identificação, antes de ser soterrada pelo mundo de estranhezas. Não existe qualquer escapatória à gentil protagonista – ela não encontra interlocutor às lamúrias pessoais, para além do espectador impotente; ela não controla a rota do carro, não foge à viagem, não consegue sair de casa. “Você não é obrigada a ir. Você ainda pode fugir”, sugere uma personagem ironicamente presa, e impossibilitada de fugir do próprio lugar onde se encontra. Mas fugir do quê, e para onde? Talvez o personagem principal da obra seja sua dinâmica particular do tempo e do espaço, um delírio no qual o espectador é preso, tal qual o protagonista no labirinto de neve de O Iluminado. “Decifra-me ou devoro-te”, lança o filme. Pouco importa a interpretação sugerida. Na conclusão, espécie de happy ending cínico onde sonho e realidade se encontram, o espectador será inevitavelmente devorado pela esfinge. A única saída proposta pelo jogo se encontra na morte.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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