Crítica

Segundo o dicionário, ‘sinédoque’ é a expressão que define a substituição de um termo por um outro de igual ou similar significado. E é exatamente o que acontece em Sinédoque, Nova York, longa que mostra o que acontece quando um artista absurdamente criativo decide substituir a realidade pela ficção. Ou vice-versa. E isso se repete nos dois lados da tela. Afinal, quem está no comando desta incrível aventura intelectual é o genial Charlie Kaufman, roteirista vencedor do Oscar por Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças e autor também dos surpreendentes Quero Ser John Malkovich e Adaptação. Agora, estreando como diretor e sem intermediários no processo de levar suas criações para a tela, ele radicaliza de vez, com tudo de bom e de ruim que isso possa significar.

Vamos à trama. Caden Cotard é um diretor de teatro que fez fama realizando peças baseadas em textos clássicos. Ao ganhar um importante prêmio, decide produzir algo ambicioso e inovador: uma ideia original, que consiste em reproduzir sua própria vida, em escala natural. Ou seja, não é um retrato, ou uma época a ser enfocada. É simplesmente tudo. Para isso, aluga um gigantesco galpão, contrata centenas de atores e extras, e simplesmente enlouquece ao dar início a uma sequência de ensaios que não tem fim. E isso pelo óbvio fato de que a vida, por si só, encerra apenas quando termina. Por mais previsível que isso possa parecer, dentro de Sinédoque, Nova York esta verdade adquire novas dimensões, mais alucinantes e perturbadoras. Um mundo paralelo, inspirado na vida real e capaz de gerar possíveis interpretações contínuas e ininterruptas se estabelece, como nas tradicionais bonecas russas, em que uma se encontra inserida dentro de outra, e de outra, e de outra...

Caden, o personagem, merece um momento de observação à parte. Interpretado com maestria por Philip Seymor Hoffman (vencedor do Oscar por Capote e indicado neste ano por Dúvida), é uma das figuras mais singulares que já apareceram num produto hollywoodiano. Lunático, paranóico, criativo, inspirado, assustador, abusado, ousado, deprimido, irascível, determinado. Estes são apenas alguns dos adjetivos que podem ser usados em sua definição. E nada melhor do que um ator deste gabarito para defendê-lo com ardor e total entrega. Ao redor de seus ímpetos visionários estão outros seres igualmente singulares, como a esposa (Catherine Keener) que decide eliminá-lo de sua vida, a bilheteira apaixonada (Samantha Morton), a atriz em busca do estrelato (Michelle Williams), a terapeuta radical (Hope Davis) e até os atores contratados para interpretá-los, vividos por profissionais respeitados como Emily Watson e Dianne Wiest, entre outros de maior ou menor destaque.

Sinédoque, Nova York é, acima de tudo, uma experiência. Mais que um mero filme, é uma expressão artística que merece ser analisada com esmero e cuidado. Certamente não é direcionado a todos os públicos, até pelas mensagens duplas e codificadas que transmite, pelos signos alternados e até mesmo contraditórios que expõe em seu enredo e pelos altos e baixos de uma história aparentemente linear e objetiva, mas que na verdade possui níveis de leitura muito mais profundos e intensos. Estamos diante de um diretor querendo reproduzir o real através da ficção, ou seria o caso de um artista buscando interpretar seus medos e anseios por meio de um discurso fantasioso? A crise é artística ou social, criativa ou contemporânea, ilusória ou concreta? Questões que perturbam tanto o protagonista quanto o realizador, e, por que não afirmar, uma plateia inquieta de provocações válidas e pertinentes.

Exibido pela primeira vez no Festival de Cannes, Sinédoque, Nova York foi premiado no Independent Spirit Awards (Melhor Filme de Estreia e Prêmio Especial Robert Altman), e segundo os críticos de Los Angeles (Produção) e Austin (Roteiro). Mesmo assim, passou despercebido no Oscar e em outras associações de maior destaque. Nas bilheterias a situação não foi nem um pouco melhor – apesar de ter custado cerca de US$ 21 milhões, arrecadou sete vezes menos nos Estados Unidos. Um desempenho que em nada corresponde ao seu valor histórico e cultural. Esta é uma obra que certamente ganhará importância com o passar do tempo, como uma preciosidade a ser descoberta e cultuada. Infelizmente, no entanto, serão poucos os que conseguirão identificar todos estes méritos. Mas que graça teria se todo mundo pensasse exatamente igual?

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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