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Sinopse

Claire é uma pianista famosa, vivendo com o marido e agente Frédéric. Depois de presenciar um parto de emergência durante um voo, ele se torna obcecado pela ideia de ter um filho, embora a esposa não o deseje. Frédéric encontra uma solução: sabotar a pílula anticoncepcional da esposa, e esperar pelo bebê. Se Claire não estiver disposta a cuidar da criança, ele estará.

Crítica

Apesar da aparência de comédia romântica, é possível que Enorme (2019) constitua a antítese do romance. Existe um elemento tóxico no relacionamento entre a pianista Claire Girard (Marina Foïs) e o marido e agente Frédéric Girard (Jonathan Cohen). Ele controla a vida da esposa desde a agenda profissional até as escolhas de comida, incluindo a hora de tomar a pílula anticoncepcional e a hora de fazer sexo. Ela não se encaixa nos moldes de mulher virtuosa e submissa, muito pelo contrário: Claire simplesmente não se importa, com os outros ou consigo mesma. Trata-se de um prodígio do piano sem real prazer pela música, uma mulher casada sem qualquer desejo ou carinho pelo marido. A artista não possui objetivos, passatempos nem amigos, limitando-se a um corpo presente para uma mente ausente. Eles se alimentam dos excessos alheios: o impulso dominador do marido se encontra com a entrega indiferente da esposa. Frédéric possui forte pulsão de vida: o produtor sonha em ter filhos, viajar, conquistar a fama, participar dos círculos influentes. Claire não deseja que nada cresça a partir dela: nem bebês, nem afeto de terceiros, nem cobranças. Ao invés da penetração, prefere receber sexo oral “para relaxar”. Ela é excessivamente etérea; ele é excessivamente terreno.

Uma das dinâmicas mais comuns nas comédias sobre relacionamentos consiste na crença de que “opostos se atraem”, equilibrando-se e propondo uma vida mais saudável a ambas as partes. No entanto, a diretora Sophie Letourneur opta por um encontro destrutivo entre diferenças. Frédéric manipula o anticoncepcional da esposa para ter filhos, apesar de Claire ser contrária à gravidez. Quando engravida, ela praticamente ignora a presença de uma vida crescendo dentro de si – quem assume a empolgação, a busca por papinhas, berços e mamadeiras é o pai obsessivo. Entre abraçar a maternidade enquanto dádiva que transforma positivamente a vida das mulheres, e defender o direito feminino de não ser mãe, o filme busca uma via alternativa: a gestação de uma personagem desinteressada pelo bebê. Claire não sabe de quantos meses está, ignora o sexo da criança, não pensa em nomes, datas, nem nas mudanças futuras em sua vida. Desprovida da relação materna, ela se converte num corpo portador, uma barriga de aluguel para o próprio filho. Já o pai manifesta alterações hormonais, vê a barriga crescer, teme pelo parto.

Através do desencontro entre corpo e afeto, entre paternidade/maternidade e responsabilidade, a cineasta provoca um curto circuito na representação da família patriarcal. Enorme apoia-se na ideia da monstruosidade, apelando para o cinema fantástico: a barriga da mãe cresce a níveis incompreensíveis, praticamente tomando conta de Claire (o parasita devora o organismo que o carrega), enquanto o pai sente os efeitos que deveriam estar presentes na mãe. Letourneur mostra o pênis ereto do marido como um pedaço de carne inerte, enquanto a mulher grávida tem as pernas jogadas de um lado para o outro, suspensas, rebaixadas, enquanto a vagina e o útero são inspecionados por dezenas de profissionais que entram pelo quarto. Atinge-se um limite do absurdo, nem tão satírico quanto as esquetes violentas de Monty Python: O Sentido da Vida (2014), mas tampouco realistas. A diretora aposta na fricção entre o naturalismo documental (os médicos e enfermeiros reais) face à prótese pouco verossímil de Claire. O humor propositadamente incômodo se insere no real, provocando-o e testando os seus limites. Diante de marido e esposa com as barrigas crescendo (a dele, muito mais natural do que a dela), como temer pelo futuro destas figuras fabulares, tão distantes de pessoas reais?

Deste modo, o filme permite que o espectador adote o distanciamento sobre algo tão universal quanto os partos. Recentemente, Pieces of a Woman (2020) buscava respeitar a dificuldade do nascimento e a intimidade da mulher ao tratar os temas com a solenidade de um ritual macabro. A comédia francesa vai pelo caminho oposto, desconstruindo por meio do realismo fantástico o senso comum a respeito das gestações. Parece muito violento ser mulher em Pieces of a Woman, visto que o filme nos diz exatamente o que pensar a respeito da maternidade. Já o projeto humorístico sugere que o gênero não necessariamente corresponde ao corpo, e que este, por sua vez, não precisa corresponder à afetividade. Somos múltiplos, estranhos, monstruosos na maneira como nossas barrigas se dilatam, na percepção de que um orgasmo pode facilitar a ruptura da bolsa e de que massagens dentro da vagina deveriam ajudar o processo do parto. O drama húngaro insistia que o corpo sofre, a psique sofre, e somos todos condenados ao martírio social. Já a comédia prefere dizer que o corpo é uma massa disforme capaz de assustar ou dar prazer – talvez os dois ao mesmo tempo. O aspecto natural da vida e da morte torna-se algo artificial e grotesco no projeto de Letourneur.

A estética também aposta no contraste entre a linguagem crua, próxima do documental, e a ridicularização propícia ao humor. Claire jamais convence enquanto pianista, porém os concertos em si são bastante plausíveis. Os hospitais e clínicas transbordam de realismo, enquanto o colega xamã, que atende em seu minúsculo apartamento, soa extraído de algum programa humorístico. A barriga prostética dá origem a um recém-nascido verossímil, enquanto o sexo patético do casal se faz através de corpos expostos com naturalidade. Enorme nunca nos diz ao certo quando devemos rir (ou se devemos fazê-lo), ou se apenas provoca os limites da nossa crença na ficção. O humor se aproxima do body horror: devemos ter medo ou rir diante do corpo deformado ao limite da explosão? O discurso tão elástico quanto a barriga de Claire pode ser questionado quanto aos rumos do casal, à ideia do perdão pós-abuso e sobretudo ao aparente final feliz. Não é clara a mensagem sustentada pelo desfecho em aberto, o que talvez constitua um mérito, por favorecer a reflexão, ou um demérito por permitir leituras coniventes com a violência conjugal. De qualquer maneira, a bizarra experiência vale pelo encontro entre uma excelente atriz dramática, Marina Foïs, em registro muito diferente de tudo o que fez antes, face a um humorista consagrado, Jonathan Cohen, sublinhando com intensidade seus traços cômicos. Se a comédia popular representa o gênero do reconforto, Letourneur encontra neste registro a possibilidade de um humor interessantemente desconfortável.

Filme visto online no 11º MyFrenchFilmFestival, em janeiro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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