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Sinopse

Martha e Sean se preparam para o primeiro bebê do casal, e decidem fazer o parto em casa. No entanto, o momento não ocorre como previam, e os dois precisam lidar com o impacto de uma tragédia. Sofrendo pressões familiares, midiáticas e de advogados, os dois precisam descobrir como preservar o relacionamento em crise.

Crítica

É difícil prever para onde se encaminha Pieces of a Woman (2020), drama com múltiplos focos a partir de uma tragédia familiar. A narrativa é dividida em três atos rigidamente separados: primeiro, uma trama ultrarrealista sobre o parto de Martha (Vanessa Kirby), mulher que decide ter o bebê em casa. As cenas são longuíssimas, em planos-sequência, evitando a romantização da maternidade. Alguns teóricos encaixariam o projeto no subgênero “o corpo sofre”, no qual se representa algum processo doloroso (geralmente imputado às mulheres) da maneira mais brutal possível. Segundo, existe um melodrama familiar, menos focado nas ações do que nos sentimentos, refletindo o trauma vivido por Martha e o marido Sean (Shia LaBeouf). O senso de urgência da parte anterior desaparece, cedendo espaço a um retrato lacônico do luto. Terceiro, e talvez o mais inesperado de todos, seja o suspense de tribunal, onde se espera resolver legalmente o drama da protagonista. O foco abre-se progressivamente, de um instante íntimo entre três pessoas (mãe, pai e parteira) ao julgamento acompanhado pela nação inteira.

O cineasta húngaro Kornél Mundruczó se tornou conhecido pela mão pesada nas composições imagéticas e nos maneirismos de câmera, que já produziram tanto sequências frenéticas de perseguição (em Deus Branco, 2014) quanto uma aventura fantástica (Lua de Júpiter, 2017). No caso do projeto de 2020, o interesse provém do encontro entre o olhar estetizante e o drama intimista. Em certos aspectos, a reunião provoca ótimos resultados: o terço inicial permite aos atores construírem os personagens como num palco teatral. As imagens ininterruptas possibilitam um desenvolvimento orgânico das falas e expressões corporais. Neste momento, Kirby encontra um interessante viés à protagonista, certamente apegada ao bebê, porém nada encantada quanto à vida de mãe. Martha conduz a gestação com a naturalidade de quem possui um trabalho a cumprir, e deseja fazê-lo muito bem. A atriz foge aos extremos tão associados ao parto, à maternidade e ao luto, evitando posturas de vítima, mártir, heroína ou qualquer outro selo que lhe colem. O forte olhar da intérprete carrega um misto de raiva, cansaço e remorso. Após a tragédia, a protagonista deseja ao mesmo tempo a guerra e a paz, o caos e o silêncio, o ataque aos outros e o direito à reclusão.

Por outro lado, certos recursos estilísticos soam exagerados, sobretudo no terço final. A sequência do julgamento inclui curiosos planos dos pescoços (em busca do batimento cardíaco das atrizes?), enquanto o ostensivo balé da câmera durante um almoço em família se traduz em exercício de vaidade. O plano-sequência possui valores muito diferentes quando serve a compor planos dentro do plano, reforçando interações pelo tempo real e pelos sons extraquadro (caso das obras de Cristi Puiu e Michael Haneke), ou quando apenas comprova o prazer do olhar onisciente, desejando estar em todos os lugares simultaneamente. A câmera móvel de Pieces of a Woman fornece tantas possibilidades a Mundruczó que o cineasta se deslumbra com o movimento em si, enquanto ferramenta retórica. Conforme a trama avança, o roteiro abandona Sean e se esquece Martha durante tempo considerável para se concentrar na mãe (Ellen Burstyn). A câmera abre tanto o escopo do olhar que perde o foco nos protagonistas - quanto mais a montagem ignora a dinâmica do casal, mais o filme se enfraquece. A representação desta dor tão íntima não resiste à tentação do espetáculo – vide o “momento Oscar” de Kirby e Burstyn, durante a catarse no almoço. Haveria múltiplas maneiras de explodir, ou implodir, sem passar pela verbalização dos sentimentos.

A propósito de verbalizações, o drama reserva outros instantes em que a elaboração do luto passa pela palavra, bem articulada e enunciada em público. À medida que investe no melodrama tradicional, o filme de ambições estéticas tão fortes se domestica, deixando de acompanhar este processo pelo olhar de Martha. Ela passa a ser observada por terceiros, e o espectador não saberá mais o que pensa, nem como pretende agir. Uma cena importante envolvendo Elizabeth e Sean será determinante para os rumos desta experiência: este será o primeiro conflito em que Martha não está envolvida. Neste instante, sequer sabemos onde a personagem se encontra. Aos poucos, a narração minimiza o papel da mãe em nome da necessidade de abraçar outras causas. A partir da exagerada cena do cheque, por volta de dois terços da narrativa, o projeto nunca mais retoma os trilhos. As atitudes de Elizabeth resultam novelescas (o roteiro realmente precisava de uma vilã?); a partida de um personagem importante não surte impacto emocional notável nos demais, e o discurso hollywoodiano diante do juiz, rompendo protocolos e promovendo uma reviravolta emocional, revela a dificuldade do autor em resolver traumas através de saídas puramente imagéticas.

Apesar destas ressalvas, Pieces of a Woman resulta num estudo satisfatório sobre a personagem principal, tratada com respeito e com impressionante variação emocional por Kirby. Molly Parker também se destaca a partir de uma figura tão pontual quanto importante à trama, ao passo que Shia LaBeouf relembra o bom ator que pode ser quando se encontra longe das grandes produções e da pressão midiática. Infelizmente, as metáforas são utilizadas de modo insistente demais, ou insuficiente: as sementes de maçã virando uma macieira e o bebê com “cheiro de maçã” resultam num imaginário óbvio (vide a fraca cena final), enquanto o símbolo do rompimento da ponte, relacionado à crise do casal Martha-Sean, poderia ser melhor explorado pelas cartelas temporais e pela conclusão. Caso se ativesse aos dois personagens que vivenciam de perto o trauma, o projeto poderia atingir um resultado mais potente. A vontade de ver o circo pegar fogo, introduzindo conflitos externos e artificiais, apenas desvia o foco do humanismo inicial. Talvez a maior ressonância, no sentido físico de encontro de vibrações contrárias de mesma intensidade, provenha do embate entre o estilo propenso à grandiloquência e um tema que implora pelo minimalismo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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