Sinopse
Megan Twohey e Jodi Kantor revelam os bastidores de uma das histórias mais importantes para a deflagração do movimento #MeToo em Hollywood.
Crítica
Em um mundo cada vez mais polarizado, no qual “opiniões” estão sendo vistas mais como fatos consumados e o indivíduo vem demonstrando uma tendência crescente a se importar menos com o outro, o jornalismo profissional vem se mostrando como uma das únicas ferramentas capazes de fazer diferença. Uma das profissões mais antigas da humanidade – talvez ainda mais do que aquela a carregar tal título, afinal, quando alguém se decidiu deitar com um estranho por troca de uma certa quantia pela primeira vez, já havia um interessado em noticiar o fato aos vizinhos – em tempos recentes tem se mostrado ainda mais essencial. Isso, é claro, por quem leva tal atividade a sério. Apurar as informações, conversar com as pessoas certas, ir atrás de todas as pistas e desvendar os segredos mais obscuros: tudo isso faz parte do dia a dia de um jornalista de respeito, aquele capaz de separar o joio do trigo e dar luz às verdades incontornáveis. É dessa rotina que se constitui grande parte da trama de Ela Disse, tanto pela proximidade que as personagens demonstram no decorrer de suas ações, como pela objetividade de seus questionamentos. E se esse já não é motivo suficiente para dedicar uma cuidado redobrado ao que por aqui se desenrola, talvez o problema esteja mais na audiência do que na tela.
O foco das investigações em cena são as acusações que passaram a se acumular há menos de uma década – ainda que remontassem a eventos ocorridos desde os anos 1990 – contra o produtor cinematográfico Harvey Weinstein, dono da Miramax e responsável por sucessos como Shakespeare Apaixonado (1998) e Gangues de Nova York (2002), entre tantos outros. Um dos homens mais poderosos de Hollywood, há anos vinha demonstrando um comportamento abusador, responsável por proporcionar ambientes tóxicos em seus escritórios e promovendo – ou enterrando – carreiras de atrizes em ascensão de acordo com as respostas delas em relação aos seus avanços não solicitados. A exposição desse comportamento e os efeitos provocados na indústria – e em tantas outras que enfrentavam problemas similares – ficou conhecido como o Movimento #MeToo (Eu Também, expressão usada pelas vítimas que, enfim, começaram a se manifestar por identificaram as condições propícias para tal). As responsáveis por trazerem a público aquilo que todos sabiam, mas ninguém comentava, foram ironicamente, duas mulheres: Jodi Kantor e Megan Twohey, repórteres do The New York Times. Ou seja, jornalistas fazendo o seu trabalho.
Para tanto, foi fundamental a escolha também de uma profissional feminina para contar essa história por detrás das câmeras: a cineasta alemã Maria Schrader, que antes assinou o drama romântico O Homem Ideal (2021), escolhido para representar a Alemanha no Oscar 2022, e a minissérie Nada Ortodoxa (2020), pela qual ganhou um Emmy. A diretora tem consciência do tema explosivo que tem em mãos, e reconhece o quão simples seria se deixar levar pelo lado mais bombástico e gratuito. No entanto, opta por caminho inverso, centrando seu olhar no exercício jornalístico de investigação e reportagem, e menos nos casos a serem denunciados. Há, por exemplo, dois bons filmes direcionados às vítimas: o excelente (e pouco visto) A Assistente (2019) e o interessante (e mais sensacionalista) O Escândalo (2019), que chegou a ganhar um Oscar. Ela Disse, porém, vai por outro caminho. O que não significa que essas mulheres diretamente afetadas não se façam presentes – aliás, até mais do que nesses citados acima.
Isso se dá porque, uma vez que usam o nome real de Weinstein, não faria sentido empregar denunciantes inventadas. Pelo contrário, o que se vê na trama é a presença daquelas que foram por ele assediadas e as primeiras a se posicionarem contra ele. O grau de envolvimento delas com essa produção, no entanto, variou. Desde Rose McGowan (que narrou sua história e permitiu que seu nome fosse citado, mas não participou diretamente) até Ashley Judd (que aparece em cena como a si mesma), passando por Gwyneth Paltrow (que também concordou com o uso do seu depoimento, mas se envolveu apenas com o uso de sua voz em uma ligação telefônica). Outras atrizes de renome, como Samantha Morton e Jennifer Ehle, surgem interpretando outras pessoas, mas também como parte da lista de acusadoras. A força feminina, como se percebe, é enorme. Porém, Schrader não trata suas mulheres, principalmente as duas protagonistas, como operárias idealizadas. Não, são pessoas normais, que sofrem de depressão, precisam lidar com o afastamento da família por obrigações profissionais e encarar as demandas de filhos e maridos em meio a tudo o que estão fazendo em campo e na redação. O retrato é complexo, e por isso mesmo, de ainda maior impacto.
Ela Disse é conduzido com mão segura por sua realizadora, que mesmo tendo pela frente uma trama cujo final se conhece antecipadamente – não só por se tratar de um caso recente (os fatos aqui narrados ocorreram em 2017) como também pela imensa exposição na mídia que tais denúncias receberam – é hábil em manter o interesse do espectador a respeito de cada desenrolar. Há um ou outro deslize – como a tentativa de se criar um suspense policial, com depoimentos sendo vigiados, carros de janelas escuras perseguindo as repórteres e vítimas silenciadas – mas nada capaz de retirar o brilho da discussão em jogo. Da mesma forma, Carey Mulligan (Twohey) e Zoe Kazan (Kantor) formam uma dupla poderosa, equilibrando as atenções e, cada uma, respondendo por momentos de brilho individual – Kazan em sua última conversa com Judd, Mulligan ao enfrentar Weinstein em um encontro nos escritórios do Times, ambas excelentes, e por motivos opostos (uma mais emocional e envolvida, a outra fria e resistente). Não tão transformador quanto um Todos os Homens do Presidente (1976), mas também mais pessoal do que um Spotlight: Segredos Revelados (2015), eis aqui um filme que não apenas resgata a necessidade de uma atividade que há muito vem sendo combalida, mas que discute com propriedade um assunto que merece – e não pode – ser mais ignorado.
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