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Sinopse

Aspirante a produtora de cinema, Jane consegue um emprego de assistente de um magnata do ramo. Mas, à medida que se costuma com a nova função, ela percebe como esse meio pode ser abusivo.

Crítica

A Assistente (2019) é um drama, mas em diversos aspectos, lembra um filme de terror. Jane (Julia Garner), contratada há poucos meses como secretária de um grande produtor de cinema, se sente ameaçada, sem poder lutar contra o inimigo invisível. Jamais vemos o rosto do patrão, limitado a uma voz aterrorizante pelo telefone. Os colegas de trabalho, dois homens de maior experiência, vigiam Jane e conspiram contra ela. A jovem sabe que, quando belas atrizes entram no escritório do chefe, as interações atrás da porta ultrapassam a esfera profissional. Desempenhando uma carga infinita de pequenas tarefas (ligações, e-mails, impressão de documentos, reserva de hotéis), ela lida com a insatisfação constante das pessoas ao redor. A secretária recebe bolinhas de papel na cabeça quando desejam chamá-la, e responde à insatisfação da esposa do chefe. Jane é invisível (alguém conhece seu nome ali?), e ao mesmo tempo, incomoda por onde passa, como se ocupasse espaço demais. Imagine os típicos desconfortos de elevador (quando se fica preso com desconhecidos durante alguns segundos), estendidos por 90 minutos. Assim como no elevador, a protagonista se encontra impossibilitada de sair.

Por esta razão, jamais acompanhamos a assistente em sua casa, com amigos, familiares, ou estudando na universidade. A câmera, assim como a personagem, está presa ao local de trabalho. Sabemos que outras esferas existem na vida dela, espremendo-se nos intervalos permitidos pelo trabalho. “Você deve estar se divertindo”, “Esta é uma grande oportunidade para você”, sugerem os familiares ao telefone, sem suspeitarem da rotina desumanizada. O filme transmite a ideia de que nunca sabemos ao certo o que se passa no cotidiano profissional de alguém. O espectador é o único ciente das ameaças veladas, ou o único a quem se possibilita enxergá-las com estranhamento – somos colocados em posição de testemunhas privilegiadas, cúmplices de um grito preso na garganta. A diretora e roteirista Kitty Green evita nomear a empresa, o chefe, e citar qualquer filme ou ator. A empolgação presumida quanto ao meio artístico está ausente desta empresa, que talvez pudesse fabricar xampus ou sapatos sem grande diferença. As atividades se limitam a reuniões, relatórios e reservas de restaurante. Não existe qualquer aspecto glamorizado capaz de compensar a opressão diária (como se buscava em O Diabo Veste Prada, 2006, por exemplo). A atmosfera ao redor da protagonista é claustrofóbica.

A Assistente poderia ser considerado o avesso de O Escândalo (2019), que também representa a opressão feminina e o abuso sexual. No entanto, o projeto dirigido por Jay Roach recorria ao espetáculo, incluindo próteses nos atores, ritmo televisivo, lágrimas, irrupções de violência, e até uma incômoda imagem da virilha de Margot Robbie. O cineasta partia do pressuposto que, para acreditarmos no assédio, seria preciso vê-lo – um engano fundamental na época em que nada soa mais falso do que as imagens. Desde quanto uma ficção comprova a veracidade de algo, nos tempos de fake news e deepfake? Green possui um discurso muito mais sofisticado, além de recursos cinematográficos mais incisivos. Ela foge ao caráter explícito da violência, recorrendo ao imaginário do espectador e às formas de coerção socialmente aceitas. A voz do chefe ao telefone, o olhar incômodo das mulheres que chegam e partem, as brincadeiras dos homens sobre o sofá (eles sabem o que acontece ali) apelam ao imaginário coletivo do estupro e do abuso de poder. A diretora não precisa provar que este caso é verdadeiro para acreditarmos nele: ela está mais interessada em investigar de que maneira ele reflete um mecanismo amplo e recorrente. A violência se torna o tema óbvio do qual ninguém fala.

Green recorre a ferramentas puramente estéticas para sugerir o caráter inóspito desta major, como se diz no meio do cinema. As luzes do escritório são frias e pontuais, reforçando a impressão de cansaço. Os ambientes impessoais, de cores beges e cinzentas, repartidos em cubículos idênticos, limitam a expressão da subjetividade. Cada ruído é intensificado ao limite do incômodo: os barulhos da impressora, os telefonemas ininterruptos de terceiros, os interfones, as conversas indistintas por trás das portas. Uma caixa de lencinhos de papel, arrastada sobre a mesa em direção a Jane, produz o rangido agressivo de um objeto metálico arranhado – numa cena de violência finamente calculada pela cineasta. Julia Garner, excelente atriz, possui ciência da necessidade de fazer pouco em termos de expressão, reagindo ao invés de se impor àquele ambiente repleto de estímulos. Sentimentos distintos são transmitidos através do rosto emudecido da personagem, cabendo à protagonista desenvolver um amplo arco dramático sentada atrás de uma mesa, ou então aquecendo alimentos congelados na copa. Os espaços se tornam personagens tão importantes quanto a secretária e os colegas interpretados por Jon Orsini e Noah Robbins.

Esteticamente, A Assistente nunca soa repetitivo, tampouco esgota seus recursos. Nota-se o desenvolvimento cuidadoso, próximo da implosão, na trajetória da assistente. Esqueça os tapas, cenas estupros, ameaças mortais ou brigas de qualquer tipo. Não há catarses, razão pela qual o drama se torna ainda mais asfixiante. Existe algum diálogo, em todo o longa-metragem, sobre tópicos alheios ao trabalho? Provavelmente não. Mesmo com o pai e a mãe, Jane aborda o quotidiano no escritório. A saturação proposital do tema (culminando no belíssimo travelling ao fim do dia) se equilibra com a diversidade na maneira de filmá-lo. O filme recorre a inúmeros ângulos, sempre fixos e contemplativos, além de discretos zoom-ins no rosto da protagonista, sons fora de quadro e sombras indistintas através das janelas. Ao invés de gritar contra a brutalidade corporativa e masculina, a ficção enxerga uma situação crônica, sem estudar um caso em particular. Ela transmite a aparência de melancolia e exaustão ao limite do insuportável (o que justifica a simples, porém forte conclusão). Antes de propor a superação do problema, Green atenta à necessidade de perceber que ele existe.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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