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Sinopse

O gigante do telejornalismo e antigo CEO da Fox News, Roger Ailes, tem seu poder questionado e sua carreira derrubada quando um grupo de mulheres o acusam de assédio sexual no ambiente de trabalho.

Crítica

Em pleno julgamento do produtor Harvey Weinstein por abuso sexual e estupro, às vésperas da campanha eleitoral de Donald Trump, e na época em que a indústria do cinema se questiona como enfim incluir as mulheres de modo igualitário em seus filmes, chega aos cinemas uma produção que também poderia ser chamada de #MeToo – o filme. Partindo do caso Roger Ailes, antigo diretor da Fox News, afastado do cargo após inúmeros casos de assédio sexual, O Escândalo propõe não uma alegoria universal dos casos de abuso de poder e machismo no ambiente de trabalho, mas a releitura de um episódio específico, adotando nomes e situações reais, além de imagens de arquivo misturadas à ficção. Para o diretor Jay Roach, a semelhança com os fatos é tão importante que ele faz questão de colocar próteses em Charlize Theron e John Lithgow para ficarem ainda mais parecidos com seus referentes.

Apesar de tamanho esforço de imersão, os letreiros iniciais afirmam que se trata de “pessoas reais interpretadas por atores” (jura?), o que demonstra grande confiança dos produtores na capacidade de confundir o espectador, tamanho seria o realismo. O projeto está sempre preso entre essas duas tendências: por um lado, soar o mais fatual e objetivo possível, com letreiros, datas e nomes verídicos, e por outro lado, fazer deste episódio um estudo de caso para o espectador. Por isso, ora Megyn Kelly (Theron) atua no papel de uma das vítimas de Aisles, ora ela se converte em narradora, conversando diretamente com a câmera – e com o espectador, por extensão – para dizer quem é quem dentro da emissora, o que acontece a cada um, qual setor da empresa se situa em cada andar do prédio. O trio de mulheres que conduz a trama – Megyn, Gretchen Carlson (Nicole Kidman) e Kayla Pospisil (Margot Robbie) – fazem as vezes de personagens e narradoras, estando ao mesmo tempo dentro e fora da história, ou seja, no tempo presente e também no futuro, quando oferecem análises distanciadas ao público.

Assim, misturam-se muitos elementos cinematográficos para além da narrativa fictícia. As personagens comentam os fatos em off, quebram a quarta parede, pensam em voz alta, enquanto fotos de outras mulheres desfilam pela tela. O estilo nervoso, com câmera tremida no ombro, zooms constantes e saltos ágeis de um rosto para outro se tornou um clichê da imagem do jornalismo investigativo, sendo utilizada à exaustão em séries como The Newsroom e filmes como A Grande Aposta (2015). Estes recursos são utilizados sem moderação por Roach, como se a tensão ética, profissional e psicológica dessas vítimas não fosse o bastante para conquistar a adesão do público. Enquanto a montagem aproxima uma dúzia de mulheres relevantes à história com uma destreza notável, a câmera chacoalha para frisar que se trata de um momento de conflito. O diretor pode ser incisivo em diversos aspectos, mas ele não se mostra muito sutil – vide a insistência em cenas das protagonistas tendo ataque de nervos no banheiro da empresa, ou a metáfora óbvia da fileira de dominós prestes a desabar.

Mesmo levando em consideração a evidente boa vontade de todos os envolvidos, O Escândalo pode ser criticado por sua abordagem. Primeiro, o filme observa todas essas mulheres de fora, ao invés de adotar o ponto de vista delas. Em função da escolha por um olhar onisciente, acompanhamos momentos que nenhuma das três poderia ter presenciado (a reunião que culminou na demissão de Aisles) e observamos um caso de abuso através de uma lente fetichista, que fecha o enquadramento na virilha exposta da atriz (o que não aconteceria caso permanecêssemos com a expressão da vítima). Segundo, o roteiro busca uma espécie de paralelismo nocivo entre vítimas e algozes. Embora seja ótimo esforço de mostrar os danos psicológicos nas mulheres, desconstruindo a imagem de figuras oportunistas, pode-se questionar a tendência a suavizar a conivência dos homens, visível no insistente reforço das qualidades de Aisles enquanto diretor da Fox News.

Terceiro, embora o filme tenha coragem de denunciar um fato específico, ele apresenta dificuldade em observar o machismo inerente ao mecanismo como um todo, ou seja, à própria estrutura do poder. A família Murdoch, empregadora de Aisles, sai incrivelmente ilesa do filme, com direito a frase de efeito elogiosa (“Os Murdoch colocaram os direitos das mulheres acima do dinheiro!”, comemora Kayla). Nenhum outro caso é citado, visto que o exemplo não se estende a outras empresas. O espectador pode sair com a impressão de que, embora se trate de um episódio-chave na luta das mulheres por tratamento digno, ele correspondeu a um caso isolado. A coragem destas três mulheres é atenuada pela narrativa: diante do silêncio das colegas femininas da Fox, Gretchen nunca pensa em conversar com elas, limitando-se a ser uma boa mãe para os filhos pequenos; mesmo diante do escândalo revelado, Kayla se recusa a revelar o abuso sofrido.

Em outras palavras, O Escândalo possui a coragem de confrontar um caso real, mas não de enxergar as configurações sociais que permitiram o seu surgimento, e tampouco de apontar alternativas a essa conduta. Não por acaso, a única ideia de conclusão consiste em filmar o trio literalmente fora do espaço da empresa. Felizmente, o projeto é beneficiado pelo elenco estelar: além de Lithgow em estado de graça, Theron, Robbie e Kidman estão muito bem em seus papéis. Os personagens coadjuvantes também são muito bem representados por nomes como Kate McKinnon, Liv Hewson e Brooke Smith. Em se tratando de embates essencialmente verbais, com provocações e manipulações nos bastidores, os atores – e principalmente as atrizes – possuem farto material a trabalhar, e o fazem com comprometimento. Se a estética não fosse tão vaidosa e intrusiva, e se os criadores tivessem a ousadia de enfrentar o clã Murdoch (e outros semelhantes, como a família Trump), o resultado seria ainda mais impressionante.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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