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Sinopse

Em Coringa: Delírio a Dois, internado no asilo Arkham, na cidade de Gotham, EUA, o rebelde e instável Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), agora Coringa, conhece a interna Lee Quinzel (Lady Gaga), por quem se apaixona. Aos poucos, a loucura de Coringa toma a sanidade de Harley e ambos começam um romance.    

Crítica

Em certo momento de Coringa: Delírio a Dois, Arthur Fleck se aproxima de Lee Quinzel e sussurra em seu ouvido: “você assume a partir daqui?”. Pois bem, por mais que Lady Gaga esteja fazendo mais barulho na divulgação desta sequência direta de Coringa (2019), sua personagem não chega a cumprir essa promessa. Afinal, este assim como o anterior, é um filme de e sobre Fleck, também conhecido pela maioria apenas como o Coringa. Mas seria somente isso? Há uma vontade por parte de Todd Phillips, que além de diretor é também roteirista, em seguir investigando a construção desse psicopata e os elementos que possibilitaram a elaboração de uma alma tão perturbada. Se antes ele havia se debruçado sobre as causas, dessa vez o foco está nas consequências e na hipótese dessa ser uma mente dividida, algo que remete ao Fragmentado (2016) de M. Night Shyamalan. O problema é que esse cenário é somente vislumbrado, mas não percorrido. Como outra fala dita mais adiante reforça, “você abandonou a fantasia”. E o que sobra, quando isso se confirma, é pouco.

A primeira impressão que se tem diante desse que é um dos títulos mais aguardados da temporada, ao menos para os familiarizados com as investidas da DC no cinema, é do processo vivido por Tim Burton após o sucesso de Batman (1989). O resultado – tanto financeiro, quanto de crítica – foi tão além das expectativas que a Warner o obrigou a realizar uma sequência, mesmo ele sendo publicamente contrário a se envolver em continuações. O diretor só acabou concordando quando obteve total liberdade criativa. O resultado foi Batman: O Retorno (1992), que apesar de ser melhor do que o anterior, quase inviabilizou a permanência do Homem-Morcego nas telas pela bilheteria aquém do aguardado e por se tratar de um longa que em nada atendia às expectativas dos fãs. Pois bem, a questão é que Todd Phillips não é Tim Burton. E se o mesmo aconteceu com ele nos bastidores, pela pressão de um novo sucesso, é pouco provável que isso se repita. Coringa: Delírio a Dois é não apenas um ponto final nessa incursão pelo personagem, como também uma antítese do primeiro filme.

Esse reencontro com Arthur Fleck se dá exatamente após os eventos vistos em Coringa. Porém, ao invés do anti-herói em ascensão do qual o público se despediu cinco anos antes, o que se vê agora é um homem desidratado, uma sombra daquele de antes. Não por acaso, Phillips opta por começar sua história com um desenho animado ao estilo dos clássicos matutinos da Warner, como Pernalonga ou Tom & Jerry, apropriadamente batizado de Coringa em O Homem e sua Sombra. Trata-se de um prólogo do que virá a seguir. Essa experimentação não se encerra nesse momento inicial, e seguirá até o fim. E o ingresso de Lady Gaga no elenco também está longe de ser uma coincidência. Delírio a Dois revela-se rapidamente como um musical, e ter uma cantora defendendo canções como “That’s Entertainment”, “Gonna Build a Mountain” e “If My Friends Could See me Now” é uma escolha consciente. Se por um lado garante excelência vocal, por outro contribui para que a audiência siga diante da persona, e nunca da personagem. Não existe Lee Quinzel, Harley Quinn ou Arlequina. Quem está ali, do início ao fim, é a própria Lady Gaga.

Mas o que resta de Arthur Fleck, portanto? Ele, no frigir dos ovos, é o verdadeiro protagonista de Delírio a Dois – e não o Coringa. Se a dúvida entre qual dessas personalidades estaria no controle do indivíduo chega a ocupar a narrativa em um momento ou outro, ela logo se dissipa – e pela voz do próprio. “O Coringa não existe. Fui eu, Arthur, que matei cinco pessoas. Cinco, não. Matei seis, pois assassinei também a minha mãe, asfixiando-a com um travesseiro”, confessa, diante de um júri chocado por tamanha revelação. Isso afasta sua amante, que busca a fuga, não o homem real. E faz com que ele próprio também se distancie daqueles que afirmam idolatrá-lo sem, de fato, conhecerem quem está por detrás da maquiagem. Se nas histórias em quadrinhos o Coringa se consolidou como o maior dos inimigos do Batman tanto pela loucura – o rei do caos – como pela genialidade – o mestre do crime – o Arthur Fleck de Joaquin Phoenix (ainda em uma composição impressionante, mas que em nada agrega ao que já foi visto) se mostra nem um, nem outro. Ao tomar para si a responsabilidade dos atos por ele cometidos, deixa claro não ser louco. Mas também abandona qualquer viés engenhoso ou manipulador, pois se deixa levar até o único e trágico desfecho a ele cabível.

Tanto Phillips quanto Phoenix fazem desse segundo momento, mais do que um “bom te ver”, um “adeus para sempre”. É inegável ser essa uma produção repleta de méritos – trilha sonora, direção de arte, figurinos, tudo no seu devido lugar. Mas a montagem derrapa num ou noutro ponto, indecisa entre o drama de tribunal e o thriller prisional. Em resumo, o que se tem é a história de um ser trágico, desesperado por ser visto, que acaba encarcerado, e dessa prisão a torna seu palco, construindo um status de celebridade a partir disso. A atenção midiática que recebe o transforma, mas não permite que deixe de ser quem é de verdade, e é isso que a corrói. Isso foi visto antes, e o nome era Chicago (2002) – esse, sim, um musical de verdade. E assim como nesse, os comentários musicais que pontuam a trama servem apenas como escape à realidade, instantes de fantasia que mostram a necessidade dos personagens em fugir de suas duras realidades. Coringa: Delírio a Dois usa – e abusa – de igual estrutura. Com duas décadas de atraso – e um evidente desgaste no processo, ao negar tanto sua origem, como a fórmula que se esforça em abraçar. E sem ser nem uma coisa, nem outra, tudo o que consegue é ficar pelo meio do caminho.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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