Crítica
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Sinopse
Crítica
Um filme sobre pertencimento. Assim pode ser definido Canção ao Longe, primeiro longa solo de Clarissa Campolina, que antes havia assinado o documentário Enquanto Estamos Aqui (2019), com Luiz Pretti, e o drama Girimunho (2011), com Helvécio Marins Jr. Obra assumidamente feminina, tem como protagonista Jimena, uma jovem buscando por seu lugar no mundo. Sem saber para onde vai e nem de onde vem, lamenta tanto a ausência de um passado quanto a falta de perspectiva em relação ao futuro. Porém, essas não são questões definidoras de sua personalidade. Há mais a seu respeito do que os caminhos por onde percorreu e as pessoas que a circundam possam lhe oferecer. Trata-se, enfim, de um processo de construção, mas um que não se encerra em si mesmo. Pelo contrário, lida com as possibilidades de algo em movimento, de progresso e evolução contínua. A ausência de respostas pode incomodar alguns, mas além dos atos que empreende, estão nos sentimentos que vai percorrendo ao longo dessa trajetória o maior ganho que almeja.
Jimena, vivida com delicadeza pela estreante Mônica Maria, é uma mulher negra. Essa condição a coloca em um conflito identitário interno constante, isso por viver ao lado da mãe (Margô Assis) e da avó (Matilde Biadi), uma vez que as duas são brancas. Fruto de um relacionamento materno com um homem estrangeiro e negro, alguém com quem pouco conviveu e que a respeito menos ainda sabe. Tem um endereço no exterior, que serve para cartas esparsas trocadas vez que outra. “Não mais lhe escrevi pois não tinha o que dizer”, afirma o pai, em uma das últimas missivas enviadas. Mesmo assim, ela insiste em algum tipo de comunicação. “Não sei nada a seu respeito, nem mesmo a vista do seu quarto tenho como imaginar”, afirma, para receber, como troca, não mais do que um retrato do que pode ser visto a partir da janela do quarto de onde o pai mora. A questão da cor é forte – a ausência de uma conexão mais concreta com a mãe é substituída pela expectativa de uma ligação maior com o pai – mas há mais a ser desenvolvido. Está em si, no seu âmago, um debate que trava consigo mesma diariamente. Não se trata apenas de um diagnóstico visível através da pele.
Enquanto isso, Jimena vai percorrendo seu lugar no mundo. Quando em casa, busca se alienar ao máximo, não se envolvendo com questões do cotidiano, evitando entrar em conflito, aceitando o que lhe é ofertado sem rudeza, mas com uma quase indiferença. Ao mesmo tempo, parte em busca de um espaço que possa chamar de seu. Pensa primeiro na possibilidade de dividir um apartamento através de um anúncio de jornal, busca amigos com quem possa compartilhar do mesmo interesse, quem sabe não é chegado o momento de um voo solo? Enquanto vai amadurecendo a questão que aos poucos vai levantando maior urgência, permite se envolver com um homem que também tem sua própria bagagem: trata-se de um pai solteiro. A princípio, pode parecer uma responsabilidade maior que alguém como ela talvez estivesse pronta para assumir. Mas esse questionamento não surge por meio de embates expositivos ou discussões acaloradas. Pelo contrário, a proximidade entre os dois se dará de forma natural, quase inesperada, ainda que sólida. Ela tanto quer entender o que o rapaz tem de diferente como de igual, como encontrar nele o que tanto buscou no outro, mas também o que de especial esse poderá apenas a ela oferecer.
Ainda assim, Canção ao Longe não é um filme sobre relacionamentos amorosos – ao menos não no modelo mais tradicional do termo. O romance, aqui, não é sexual, ainda que transborde de afeto. Trata-se de um sentimento mais íntimo, dela consigo mesma. Mais do que um acerto de contas com os pais, a protagonista tem como missão perceber qual a posição que ocupa na ordem das coisas, sejam elas quais forem: na cama e no trabalho, em casa e na rua. A notícia de que o pai possuiu, anos atrás, um sebo, é também a deixa para mergulhar num passado que não mais lhe pertence – talvez nunca dele tenha feito parte – mas, do qual, inevitavelmente poderá perceber pegadas e reconhecer caminhos que ajudem nessa formação que tanto procura. Porém, são como pistas de um mapa cujos pedaços foram perdidos pelo tempo, e por mais que se esforce nessa restauração, sua completude é impossível de se dar por completo. Assim, ao invés de se assemelhar a uma jornada de redescoberta, por mais de um momento se verá como a junção de peças aleatórias, unidas mais pela força do que pela lógica. Carece à realizadora, nesse ponto, oferecer uma liga sólida aos elementos que dispõe, não se contentando em apenas expô-los, mas oferecendo também as relações que ligam um ao outro.
A impressão, enfim, que se tem na maior parte de Canção ao Longe, é que na procura pelo mínimo, tanto foi retirado que muito do que era essencial a um entendimento mais universal da história acabou também perdido pelo caminho. É salutar verificar a ausência de excessos didáticos, porém há de se buscar por um equilíbrio entre o mais e o menos, entre o muito e o tão pouco, um ponto indefinido e de difícil acesso, nem sempre alcançado com efeito durante esse percurso. De forma alguma, no entanto, inviabiliza o querer de uma mulher que anseia não só a paz daqueles que se sentem seguros em si mesmos, mas também que sabem de onde vem as armas que carregam pelos desafios do cotidiano. Eis, enfim, um filme que tem mais a dizer pelo percurso percorrido do que pelo destino ao qual se dirige, pois esse nem mesmo ao certo se tem de forma clara. Mesmo assim, uma maior lucidez nesses objetivos e uma menor ingenuidade em suas demandas originais talvez tornasse a protagonista não apenas universal, mas também mais facilmente identificável junto a um público ao qual se sente igual, ainda que por vezes se mostre por demais reclusa e afastada.
Filme visto durante o 55º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em novembro de 2022
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