Crítica


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Sinopse

Os conflitos entre o homem e a natureza são apresentados por meio das ações de um explorador e de um pescador.

Crítica

O travelling lateral que acompanha o homem-peixe tem ao fundo a evidência de um mundo aos pedaços. No primeiro plano, a aberração transformada em vítima. No segundo, o resultado da ação do ser humano que esgota o ambiente. A carga de informação dessa tomada torna irrelevante a entrevista que abre Cadeia Alimentar. O cineasta Raphael Medeiros se vale do discurso da imprensa para situar o espectador na distopia que, somada às falas religiosas, ganha contornos de apocalipse. No entanto, a entrevista supostamente reveladora perde importância quando colocada em perspectiva com as imagens e a encenação da tragédia perfeitamente compreensível sem a verborragia. Até porque, além da repórter que anuncia uma gradativa destruição dos litorais pelo avanço desenfreado dos oceanos em fúria, temos o pastor que ilustra o espanto da raça e o pescador encarregado de ser uma espécie de emissário. O tom é de denúncia. Cada “nós não fizemos nada para a natureza revidar” é contraposto por imagens do comportamento predatório do homem.

O homem-peixe é evidentemente um corpo estranho, mas somente diferenciado dos demais quando sofre bullying do pastor que o confronta com uma cabeça de peixe enfiada nas mãos. Aliás, esse personagem do pregador serve para adicionar a camada obscurantista no diagnóstico alarmado de uma realidade à qual aparentemente estamos rumando. A cena da igreja, bem como a citada chacota com o protagonista, se dá em ocasiões que beiram a caricatura de modo contraproducente. O ator David Junior aposta numa composição deliberadamente exagerada para gerar ruído, provavelmente orientado pela direção que parece almejar esse curto-circuito. O mundo dos homens é histriônico, agressivo, tensionado por toda sorte de comportamentos. No entanto, o pastor soa mais artificial do que necessariamente um sintoma da realidade pervertida pela desgraça. A risada forçada quando rechaçado pelo sujeito humilhado é um dos momentos que depõem contra a figura recorrente no cinema brasileiro recente, tristemente fiel à realidade nos templos: o pastor estereotipado.

A moral de Cadeia Alimentar passa pelas palavras do personagem de Mateus Solano. Temente a Deus, o pescador vomita sua visão limitada da realidade enquanto destrincha o fruto do trabalho. Raphael Medeiros não demarca a ironia dessas circunstâncias em que o homem-peixe é submetido à violência de sua dualidade. Sim, pois a metade homem é espelhada no colega que retira as vísceras da projeção de sua parcela animal. Essa noção está à disposição, felizmente não chegando a ser “explicada” para o espectador por meio de um diálogo expositivo ou de uma afirmação ostensiva da câmera. A atmosfera de desalento resulta da soma das imagens do entorno degradado com a edição/mixagem de som, aspecto sonoro que ainda abarca a ótima trilha sonora. Portanto, é de se lamentar que o filme insista em ser verborrágico, que frequentemente coloque na boca das pessoas concepções mastigadas, como se estivesse pregando. Até hipocrisias são esmiuçadas. A voz do pastor insiste no “nunca fizemos nada de mal à natureza”, e o que se segue é uma nova prova do contrário.

Aparentemente, o dilema de Raphael Medeiros está entre determinar e indeterminar. Por um lado, convoca (por meio de sutilezas, de sons e imagens) a melancolia de um cataclismo de margens previsíveis. Por outro, parece não confiar na capacidade do espectador de concatenar, por isso demarcando (por meio do texto) que os homens são condenados a se consumirem até a extinção. Mateus Solano alinhava tudo com a fala sobre a cadeia alimentar. Por estar supostamente no topo dela e sermos quem dá sentido às coisas – simplesmente por atribuirmos nomes e significado a elas –, teríamos o direito de usufruir indiscriminadamente dos bens naturais. Cadeia Alimentar se divide entre alertar sobre comportamentos que precipitam o abismo e enxergar os que sofrem diariamente. O mistério da porta dimensional no meio da praia é mantido como um trunfo até o encerramento, o que acaba não diminuindo a sensação predominante de indecisão entre mostrar, propor e explicar no que consiste o alerta que termina como a inversão no banquete catártico e macabro.

Filme visto online no VI Cine Jardim, em agosto de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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