Crítica


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Sinopse

Betânia ficou viúva aos 65 anos. Decidida a reinventar seu cotidiano num isolado povoado dos Lençóis Maranhenses, ela é movida pelas tradições locais, ao mesmo tempo em que luta com unhas e dentes para manter seu senso de identidade diante dos protocolos da modernidade. Exibido no Festival de Berlim 2024.

Crítica

Embora empreste o seu nome ao longa-metragem dirigido por Marcelo Botta, Betânia (Diana Mattos) não é uma daquelas protagonistas centralizadoras sem as quais a trama perde o brilho. Há vários personagens interessantes ao redor dessa parteira de 65 anos que mora no cenário paradisíaco dos Lençóis Maranhenses. O roteiro escrito por Botta é polifônico, ou seja, apresenta uma disputa de vozes projetadas de dentro do círculo familiar da protagonista. Partindo dessa matriarca, ponto de referência em que os dramas convergem, o filme expõe um panorama cheio de pequenos conflitos de naturezas diferentes. O início mostra a morte do marido de Betânia, fato que lhe obriga a primeira mudança de rotina. Depois é imposta a ela a desterritorialização por conta de um incêndio. Logo crescem as tensões internas, vide as diferenças entre a mãe religiosa e a filha regueira. A câmera em Betânia demonstra vocação documental, a julgar pela forma como captura (reverentemente) os bens de valor imaterial, tais como cantigas tradicionais e o Bumba Meu Boi. E ela procura investigar dramas individuais e coletivos. Porém, Botta tem dificuldades para conciliar as particularidades (geográficas, econômicas, culturais etc.) da região com as questões humanas apresentadas aos poucos. Betânia carrega a dor imensa do luto pela partida recente do companheiro, mas sofre de verdade com os ecos de uma perda ainda mais dolorosa do passado. Porém, esse estado de espírito não é bem trabalhado como algo definidor.

Betânia é, às vezes, visualmente muito bonito, mérito da fotografia assinada por Bruno Graziano, que consegue realizar planos plasticamente belos dessa natureza feita de dunas, águas e flores. Porém, a quantidade de transições com paisagens suntuosas é a constante que expõe um problema de ritmo localizado na montagem a cargo de Marcio Hashimoto. O excesso de retratos esteticamente exuberantes da região entre uma situação e outra causa a sensação de exibição turística dos Lençóis Maranhenses, quase como se fosse necessário entremear os dramas com essa beleza toda. Pela recorrência, causa dispersão. Assim, os problemas são desenvolvidos de modo um tanto displicente. Exemplo disso é a observação do embate entre Irineusa (Michelle Cabral) e Vitória (Nádia de Cássia), respectivamente filha e neta de Betânia. Tudo começa a ser desenhado com a fé evangélica da mulher que é chantageada pelo pastor para ser dizimista e descamba à demonstração pública de intolerância com a garota LGBTQIAPN+. Marcelo Botta estabelece uma relação de causa/efeito simples entre esses dois sintomas, mesmo eles estando distantes um do outro no filme. Evitando se socorrer no melodrama para desenhar a dinâmica familiar, o realizador fica num meio termo entre o naturalismo, eleito como o princípio narrativo, e o artificialismo decorrente da encenação e das interpretações duras. O resultado é hesitante.

Ainda dentro dessa ideia de uma narrativa polifônica, Betânia associa uma questão específica a cada personagem, assim restringindo as figuras humanas a mensageiras de algo em particular. Betânia é aquela que precisa se acostumar com os novos tempos, a matriarca em torno da qual as novidades acontecem; Irineusa é o vetor da discussão sobre a intolerância costumeira de certos evangélicos; Vitória é a nova geração descolada pedindo passagem que, por isso mesmo, engatilha o conflito geracional; Tonhão (Caçula Rodrigues) é o trabalhador precarizado que mete os pés pelas mãos ao assumir a responsabilidade de guiar um casal de franceses pelas dunas dos Lençóis Maranhenses em tempo de seca; Antonio Filho (Ulysses Azevedo) é o menino incentivado a persistir na escola para ter uma perspectiva de futuro diferente. Como dá para perceber, são muitos temas lançados nos 120 minutos desse longa-metragem que ainda utiliza o cenário como moldura única, tanto do ponto de vista natural quanto da efervescência das manifestações culturais que particularizam a região. Pena que esses tópicos são tratados de modo excessivamente fragmentado, sem o senso genuíno de integração em prol de um retrato vívido. Trocando em miúdos: quando nem nos acostumamos com um dos conflitos, angústias ou com uma situação desagregadora, logo aparece outra coisa a ser debatida dentro desse painel.

Marcelo Botta investiga um Brasil profundo em Betânia, buscando extrair desse mergulho alguns indícios da tensão entre passado, presente e futuro – sem perder de vista a imponência de um cenário paradisíaco que poder ser traiçoeiro. Aliás, a dualidade da natureza é mecanicamente citada e pouco elaborada nesse filme selecionado à Mostra Panorama do 74º Festival de Berlim. Numa cena, idosas conversam a respeito da força implacável das areias que modificam os cursos dos rios e desalojam ribeirinhos moradores da região há décadas. Em outra, Tonhão é traído pela própria arrogância (ou inocência?) ao permitir que os turistas europeus ditem o caminho a ser seguido na paisagem com dunas de areia a perder de vista, o que quase ocasiona uma tragédia. Contudo, o roteiro não correlaciona esses episódios visando enfatizar a ambiguidade da paisagem poderosa, os conectando de maneira frouxa. Paralelamente a isso, o realizador não aprofunda seu evidente interesse pelos sons, pelas cores e as culturas dos Lençóis Maranhenses, timidamente apontando componentes como culinária, manifestações folclóricas e traços comportamentais como aspectos importantes à constituição da comunidade pouco explorada para além do núcleo familiar da protagonista Betânia. Há boas ideias, uma bem-vinda valorização da riqueza natural e cultural da região e a salutar atenção às paisagens exuberantes. Mas, o filme exibe uma costura frágil entre tantos retalhos, sem fazer dessa pulverização um gesto expressivo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Grade crítica

CríticoNota
Marcelo Müller
5
Robledo Milani
6
MÉDIA
3

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