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Sinopse

Ao amanhecer irritado, Eurico Cruz sabe que algo vai acontecer. Um bilhete anuncia sua morte. Quem o ameaça?

Crítica

É revigorante constatar que no ano de 2020, dois cineastas brasileiros octogenários apresentaram projetos arrojados, aos quais poderíamos nos referir como “dignos de jovens em busca de descobertas”. Geraldo Sarno veio com a obra-prima Sertânia no Festival de Tiradentes, arrebatando também os frequentadores virtuais do Festival Ecrã com sua natureza febril e lírica. Agora, Ruy Guerra mostra ao mundo, durante o 48º Festival de Cinema de Gramado, o seu Aos Pedaços, tirando da cartola um diálogo rigoroso entre cinema e teatro. O protagonista é Eurico Cruz (Emilio de Mello), casado com mulheres homônimas, atravessado pela paranoia após receber o bilhete prenunciando sua morte. O ambiente expressionista que caracteriza os cenários imersos ora no excesso, ora na escassez de luz remonta curiosamente a apropriação que Orson Welles (além de cineasta, homem do palco) fez dos preceitos estéticos do Expressionismo Alemão. As caminhadas por corredores estilizados lembram os trajetos de Joseph K na versão do realizador estadunidense de O Processo.

Em certa altura, a multiplicação das loiras no espelho evoca Rita Hayworth em A Dama de Shanghai (1947). Contudo, a empolgação estaciona aí, na sinalização de inspirações possíveis. Ao radicalizar a encenação teatral dentro do jogo cinematográfico, o veteraníssimo Ruy Guerra – que, entre outros filmes, dirigiu o incontornável Os Fuzis (1963), um dos emblemas do Cinema Novo – cria uma dinâmica cansativa, caracterizada por monólogos longuíssimos. O trabalho dos atores é antinaturalista, vide os gestos exagerados e os diálogos empostados solenemente. As falas externam com pompa e circunstância as inseguranças e crises existenciais dos personagens frequentemente engolidos por um espaço orientando a indeterminação. Eurico mergulha num delírio vertiginoso em que confunde as mulheres com quem vive, Ana (Simone Spoladore) e Anna (Christiana Ubach), desvario instigado pelo irmão pastor que arremessa os preceitos cristãos como agravantes. As questões e os procedimentos se repetem. O filme parece andar interminavelmente em círculos.

Aos Pedaços lança mão da fragmentação e da multiplicação para acentuar o desatino. O narrador diz que as duas casas do protagonista são espelhadas, vemos as esposas com fenótipos semelhantes e, ao mesmo tempo, o próprio Eurico parece estilhaçado em vários nesse processo de danação pessoal. Ruy Guerra arrisca o quanto pode ao propor ao espectador um ritual no limite do simplesmente maçante, em que as pessoas não passam de arremedos, às vezes se desvelando em outrem, noutras fundindo-se. Mas, sobressai a sensação de que muito pouco está de fato acontecendo embaixo dessa casca estética e narrativamente, a priori, instigante. As reclamações de Eurico, as comprovações das Anas, os joguetes de tentação do pastor – como o diabo colocando Jesus à prova no deserto –, são todos traços rapidamente superados e não desenvolvidos para além da própria deflagração. As premissas são interessantes, mas padecem diante dessa falta de progresso, assim desdobradas em sequências desconexas. É possível agarrar-se à experimentação? Claro. Entretanto é pouco.

Há algumas sinalizações em Aos Pedaços que parecem tiros no escuro, tais como a menção de que Eurico mora com Ana numa casa à beira-mar e com Anna numa residência em meio ao deserto. Isso é um dado estritamente simbólico e sem qualquer efetividade, sobretudo porque em nenhum momento Ruy trabalha as diferenças entre tais personagens antes de promover a conjuntura um tanto óbvia de liquefação entre as duas/uma. A teatralidade anteriormente mencionada confere ao filme uma formalidade artificial, com protocolos prolongados em que as pessoas estão mais preocupadas em tergiversar sobre suas dores filtradas por uma autoconsciência filosófica, flertando constantemente com a mera autocomiseração. O elenco cumpre a contento o quinhão que lhe cabe nesse filme repleto de significantes – tais como as mulheres-palíndromos –, mas cuja revelação dos significados não é suficiente para desviar o todo de uma monotonia encarregada de repelir-nos. Longe de trabalhar o tempo a seu favor, o grande Ruy Guerra ousa, não ficando contente com suas áreas de conforto, mas acaba oferecendo um resultado cerimonioso, uma jornada difícil de ser acompanhada.

Filme visto online no 48º Festival Internacional de Cinema de Gramado, em setembro de 2020

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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