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Sinopse

Os garimpeiros voltaram a penetrar de modo massivo e agressivo nas florestas do Brasil desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência, em 2019. Essa movimentação alterou drasticamente o ambiente de vida dos Yanomami na região da fronteira entre o Brasil e a Venezuela. Os invasores envenenam a água com mercúrio e trazem consigo vírus mortais, tais como o da Covid-19, para comunidades indígenas até então isoladas e protegidas.

Crítica

Após algumas décadas navegando pelas ricas fronteiras entre o documentário e a ficção, o cinema brasileiro dito “híbrido” não representa uma surpresa para mais ninguém. Pedir a um realizador que separe a parcela de “verdade” da parcela de ficção em uma obra faz tanto sentido quanto pedir aos cineastas que nos revelem o que acontece aos personagens quando a trama acaba. Ora, o hibridismo está longe de um equívoco: caso os criadores desejassem esclarecer a pura apreensão do real (se isso for possível) da intervenção e roteirização, eles o fariam. Entretanto, ainda é fascinante nos deparar com imagens cuja feitura nos parece impossível ou improvável – caso das ficções dotadas de despojamento próximo ao documental, e documentários ostentando tamanho controle estético e narrativo que aparentam ter construído o mundo à sua frente, do zero, para as necessidades do filme. Projetos do gênero solicitam a atenção constante do espectador, confrontado a recursos coesos, e ainda assim, misteriosos em sua concepção. Somos incapazes de determinar o quanto daqueles elementos existiam enquanto tais, em estado bruto diante das câmeras, e quais foram criados, arranjados, repetidos ou decorados. Passamos a questionar a natureza do mundo e a natureza do cinema.

A Última Floresta (2021) constitui um desses filmes. O cineasta Luiz Bolognesi se encontra numa aldeia Yanomami, próximo à fronteira com a Venezuela. Ele registra o cotidiano dos moradores, incluindo os cuidados com as crianças, a caça, a pesca, o preparo de alimentos e a manufatura de objetos. As imagens possuem beleza estonteante: feixes de luz adentram os espaços para destacar as índias do cenário e iluminar as crianças; fogueiras servem de contraluz perfeito para filmar um bebê dormindo na rede; as cores das roupas e pinturas corporais criam uma paleta expressiva em relação ao verde das florestas e ao ocre das moradias. O diretor de fotografia Pedro Márquez trabalha com diversos planos fixos, dentro dos quais os personagens em movimento jamais saem do quadro ou atrapalham as ações (pelo menos, não nas imagens que sobreviveram ao corte final). A câmera se posiciona em ângulo e distância ideais para captar simultaneamente os corpos, os rostos, os objetos e o cenário. Esqueça o senso de urgência comum a tantos documentários políticos nos quais o conteúdo se sobrepõe à forma: aqui, a estética expressa um posicionamento político consciente.

Isso significa que os Yanonami jamais se convertem em objetos de estudos, explorados por seu exotismo ou pela diferença em relação aos brancos. O diretor encontra um posicionamento exemplar no que diz respeito ao retrato da alteridade: ele realiza um filme com seus personagens, acompanhando-os de perto, porém deixando a liberdade para efetuarem gestos de aparência natural, espontânea. Os índios são observados de igual para igual, ainda que o cineasta nunca se atreva a falar em nome deles. Embora a completa equivalência de poderes entre cineasta e personagens seja impossível, Bolognesi assume a posição de homem branco, alheio àquela realidade, por meio da humildade com que oferece a imagem aos índios. Estamos numa política da cumplicidade: os Yanomami possuem os conhecimentos a respeito de sua cultura e da opressão histórica, acentuada pelo início do governo Bolsonaro, já o diretor, Márquez, o editor Ricardo Farias e demais membros da equipe possuem os conhecimentos necessários para transformar esta visão de mundo em cinema. Assim, o autor extrai um encanto presente naquele ambiente, sem orná-lo com refletores ou quaisquer recursos artificiais. É o cinema que se adequa ao real, e não o contrário.

Ainda no que diz respeito ao posicionamento político, o documentário evita gritar aos quatro cantos o genocídio indígena, preferindo que seja retratado no dia a dia, por meio das palavras e atitudes dos personagens. A retaliação contra mineradores ocupando ilegalmente suas terras, a comunicação entre aldeias a respeito do mercúrio nas águas e a organização de mulheres numa cooperativa revelam que a política faz parte integral da vida destas pessoas, sem a necessidade de verbalizá-la em depoimentos explicativos. Nos trechos consagrados às encenações de lendas, descobrimos o mito fundador dos Yanomami, a respeito de Omama e Thüeyoma, incluindo a procriação por parte de dois homens e uma mulher pescada nas águas do rio. Estes trechos são interessantíssimos: por um lado, os índios desconhecem o dispositivo do cinema e da composição cênica. Por outro lado, dominam cada aspecto das lendas, e as tratam com um respeito e domínio impossíveis a um ator branco. Estes mitos, aos olhos dos Yanomami, estão longe de constituírem uma ficção, razão pela qual são encenados com a mesma naturalidade e seriedade da pesca ou do confronto aos invasores. Somos nós, brancos, que erguemos muros entre o real e o imaginário, entre a natureza e o homem.

“Eu sou a floresta”. “Eu estou quente. É um calor sobrenatural”, afirmam dois personagens. “Talvez um espírito da floresta tenha colocado um feitiço nele, ou um jaguar o comeu”, sugere uma mulher, a respeito da demora do marido que partiu para a caça. A Última Floresta nos permite descobrir uma concepção de mundo diferente da nossa, através de um olhar atencioso e respeitoso. Bolognesi rende-se aos letreiros didáticos somente no início e no final: no começo, para nos lembrar de que os Yanomami ocupam aquelas terras séculos antes de o Brasil ser reconhecido enquanto tal, e no final, para alertar sobre os perigos do atual governo. Este segmento, acompanhado de fotos aleatórias, produz uma pequena frustração por remeter às apresentações em Powerpoint, distante do refinamento desenvolvido até então. Ora, este seria mero detalhe diante de uma obra de resistência tanto sociocultural quanto estética: o filme defende uma reflexão pelas formas, ultrapassando em muito a simples disposição da câmera em registrar o real, como fariam as reportagens de televisão e os documentários apressados. O cinema pensa o mundo enquanto o descobre, o constrói e o veicula, sem se tornar refém dele, nem se impor ao mesmo. Este gesto de equivalência constitui a qualidade mais notável do belíssimo filme.

Filme visto no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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