Crítica


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Sinopse

Um documentário etnoautobiográfico fundamentado nas correspondências audiovisuais entre duas cineastas cubanas no exílio. Histórias se entrelaçando em meio a vários recortes e temáticas.

Crítica

É curioso assistir a um filme inédito, baseado na história pessoal das cineastas, e ter a impressão de conhecer todas estas imagens, vistas dezenas de vezes antes. A Meia Voz (2019) narra a separação geográfica e afetiva entre duas amigas. Cada uma lê em off a carta enviada à outra, no tom melódico sugerido pelo título. A trajetória de ambas é representada através de uma sucessão de símbolos: mãos fora de um carro em movimento, pegando o vento da estrada, pessoas subindo por uma escada espiralada (vista de cinema, para favorecer a arquitetura dos corrimões), mergulhos redentores no mar, passeios em câmera lenta por uma cidade distinta, imagens girando 180º (porque o mundo está de ponta cabeça, entende?), zooms invadindo o coração da protagonista (porque a imagem vai direto aos sentimentos, percebe?), além de fotografias, cartas escritas à mão, fitas cassete com as músicas preferidas etc. Trata-se de uma noção cristalizada de “cinema de arte”, compreendido enquanto fragmentação pessoal e delicada de artes explicitamente reconhecidas como tais – a dança, a fotografia, o cinema, a performance –, articuladas por câmeras lentas, colagens, telas divididas, imagens giratórias.

Não há qualquer problema com a escolha destas imagens, ou com estes recursos de linguagem em si. Cada um destes fragmentos pode ser utilizado, e já o foi, de maneiras criativas em projetos análogos. Caso o documentário espanhol-franco-suíço-cubano fosse lançado nos cinemas vinte anos atrás, talvez provocasse um furor. O problema consiste na sua elaboração cerca de duas décadas depois de o cinema confessional, em primeira pessoa e sobre temas familiares, ser reproduzido à exaustão, além de esmiuçado em estudos acadêmicos. No caso da produção brasileira, Sobral: O Homem que Não Tinha Preço (2013), Francisco Brennand (2012), Elena (2012), Construção (2012), Tim Lopes: Histórias de Arcanjo (2013), Passaporte Húngaro (2001), Diário de uma Busca (2010), Os Dias com Ele (2013), Marighella (2012) são apenas algumas das produções de diretores sobre seus familiares e, em última medida, sobre si mesmos. Elas exploram, em maior ou menor medida, a narração pessoal em off, os vídeos, cartaz e fotografias da família, além dos recursos poéticos mencionados acima e de outros semelhantes. Em pleno 2020, esta forma de cinema constitui menos uma proposição pessoal do que um imaginário coletivo.

“Para quem estou fazendo esse filme? Meus primeiros espectadores inconscientes são meus filhos”, confessa a diretora. De fato, os projetos do subgênero “querido diário” sustentam a importância primeira aos criadores, e só então ao interlocutor. Heidi Hassan e Patrícia Pérez Fernández executam este projeto para dar forma às próprias ideias, acertar contas com seu passado, resgatar imagens e conflitos recalcados ao longo dos anos. Assim como no processo terapêutico, o projeto artístico visa contribuir ao desenvolvimento do paciente/cliente. Caso ele venha a compartilhar o conteúdo de sua sessão com terceiros, este será considerado um gesto de humildade, porém dirá menos respeito ao espectador do que ao autor do discurso. Em outras palavras, sentimo-nos os recipientes de uma narrativa elaborada não para nós, mas apesar de nós, e então, num momento posterior, revelada em gesto de impulsividade ou pretenso altruísmo (vide a exposição das imagens do marido de uma delas, que havia pedido expressamente para não ser gravado). Assim como folhear o diário alheio, paira a sensação de intimidade evidente, misturada ao senso de intrusão. Tornamo-nos, conscientemente ou não, voyeurs de uma cineasta que gosta de ser observada. (A fotografias de janelas alheias, neste sentido, dizem muito sobre esta fetichização do olhar).

Talvez esta afirmação seja bruta demais, e o projeto consista apenas na revelação sincera dos amores de duas mulheres que abandonam Cuba, o país onde se criaram, para efetuarem uma jornada de autodescoberta na Europa. Por que esta história seria menos legítima do que qualquer aventura fictícia, certo? No entanto, alguns recursos empregados entre o controle e a espontaneidade, entre o real e o fabular, produzem incômodo. As criadoras oferecem cenas de aparência documental, como uma caminhada na rua ou uma dança com o marido, para então efetuarem gestos posarem para a câmera, dialogando diretamente com o dispositivo – e com o espectador, por extensão. Esta troca poderia resultar num interessante recurso de linguagem, se as guinadas não chamassem mais atenção a si próprias do que ao conteúdo que pretendem veicular. Há pouca apreensão do real: tudo é construído para as necessidades da câmera, ou pelo desejo narcísico da criadora em se ver retratada dia após dia. Para um documentário, o resultado é intensamente ficcionalizado. A “necessidade de filmar” a todo momento, que teria conduzido a uma ruptura amorosa, se conecta com a figura romântica do autor-gênio, compelido por forças maiores a criar compulsivamente. A obra transmite a autovalorização enquanto cineastas e mulheres corajosas – a iniciativa também consiste numa auto-homenagem.

Já a montagem se desenvolve de modo consecutivo e cronológico: acompanhamos a vida da dupla em países distintos, ano após ano. O roteiro carrega implicitamente a expressão “E então” ao princípio de cada cena, visto que as ações se sucedem sem conduzirem o espectador a um rumo preciso. Fernández viaja à Espanha ilegalmente, efetua trabalhos que não a satisfazem, consegue dinheiro, pausa a carreira de cineasta. E então viaja, e então se muda, e então se cansa. Ora, onde pretendem chegar com este álbum de retratos folheado página a página? De fato, A Meia Voz alcança a união simbólica desejada pelas cineastas. Através da montagem paralela, as amigas se veem reunidas pela imagem, eternizadas pelo filme. Elas concluem o desejo de décadas atrás, quando haviam iniciado um projeto cinematográfico juntas. Curiosamente, os resquícios daquele curta-metragem trash e inventivo, com uma mulher de vestido rosa erguida por um guindaste, soa muito mais ousado do que o longa-metragem onde é evocado. Naquela época, as jovens sonhadoras percebiam a capacidade de falarem de si mesmas sem precisarem explícita e literalmente falarem de si mesmas. O cinema se torna mais instigante quanto acredita na capacidade de representação das imagens.

Filme visto no 30º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em dezembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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