Crítica

No começo dos créditos, antes mesmo da primeira cena aparecer, já surge a garantia de que algo bom se anuncia: trata-se de uma produção da Videofilmes, a produtora dos irmãos Walter e João Moreira Salles. E, sem decepcionar, essa garantia de qualidade se verifica durante o documentário Francisco Brennand, da bela fotografia de Walter Carvalho (também realizador, diretor de filmes como Budapeste, 2009) ao excelente trabalho de som de Miriam Biderman e Ricardo Reis (mestres da sonografia nacional, tendo atuado juntos em longas de sucesso como Encarnação do Demônio, 2008, e A Suprema Felicidade, 2010, entre tantos outros), passando pela edição segura de Livia Arbex e pela contundente trilha sonora de Lucas Marcier (Histórias que só existem quando lembradas, 2011). Todos esses elementos, muito bem dispostos durante a obra, de nada adiantariam se não fosse a mão delicada e certa do que fazer com o material captado de Mariana Brennand Fortes, que mostra que seu talento está além do sobrenome famoso.

Desde 1971 o artista plástico, pintor e escultor Francisco Brennand está recluso na antiga olaria da família, localizada na zona rural aos arredores de Recife. Vivendo sozinho durante todo esse tempo, suas únicas companhias são os eventuais turistas – isso quando decide atendê-los – e as moças da região, paixões que se eternizavam nas telas dos seus quadros. Mas, acima de tudo, a passagem desse tempo ficou registrada nos diários que desde os 22 anos vem escrevendo. Quando a sobrinha-neta se aproximou com a intenção de realizar um longa-metragem documental sobre sua vida e obra, ele afirmou pouco ter a dizer e, sendo assim, caminhou até sua escrivaninha, abriu a última gaveta e de lá tirou todos estes cadernos, entregando-os a ela. “Aí está o seu filme”, falou. E de fato estava certo.

A espinha dorsal do roteiro de Francisco Brennand, co-escrito pela realizadora e pela editora em parceria com Anna Clara Peltier e Rafael Lessa, todos basicamente estreantes nessa função, portanto, está nestes escritos feitos pelo artista. Mas a falta de experiência dos roteiristas até possui uma função dentro do projeto, pois a humildade que assumem ao tratar o biografado serve também para abrir espaço para que ele próprio se expresse. Assim, temos a rara oportunidade de conhecer de perto um dos maiores talentos das artes nacionais, observando-o comentar as diversas fases dos seus trabalhos, as influências de nomes renomados como Picasso, Gauguin e Rodin e até mesmo sua relação com a vida, as limitações da idade e formação cultural. É quase como se fôssemos pegos pela mão por uma visita guiada não somente pelo atelier ou por uma mostra expositiva do autor, mas sim por dentro da sua dialética, transcorrendo por seu universo de referência numa carona privilegiada.

Francisco Brennand não é filme para todos os públicos. E isso só pode ser afirmado após uma infeliz constatação, pois seu acesso deveria ser o mais amplo possível. Reflexo de uma país e de uma sociedade que valoriza mais atributos físicos do que intelectuais, estimulando questionamentos fugazes que envolvem popularidade ao invés do mérito puro e simples, o documentário está sendo exibido em horários limitados para salas quase vazias. Resta a esperança de que sirva sua função educativa em escolas e no mercado de home vídeo, onde talvez tenha melhor sorte. Filmado com competência por quem entende do assunto e de uma maneira muito inteligente, concedendo àquele que é centro do interesse toda a exposição necessária, com suas pausas, reflexões e dúvidas, temos como resultado uma obra poética , instigante e celebratória, digna de aplausos e de reconhecimento.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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