Sinopse
Crítica
De que lado você está, no espectro político atual, quando a fome – ou a falta de trabalho, ou de moradia, em suma, de perspectivas para uma vida melhor – fala mais alto? É confortável se assumir “de direita” ou “de esquerda”, quando se está distante da grande maioria, daqueles que se percebem como não mais do que massa de manobra dos posicionados nos palanques da vida. Afinal, a estes lhes competem fazer belos discursos, mas na realidade estão pouco envolvidos com o que as massas enfrentam no dia a dia. Até mesmo uma consciência social, que alerta para a importância de se olhar para o lado, exercer a empatia e se colocar no lugar do outro, é mais simples quando esse exercício se limita a um esforço voluntário vez que outra, uma esmola dada na sinaleira ou publicações lacradoras nas redes sociais, mas que escassos efeitos práticos provocam. O drama A Fratura coloca essas diferentes interpretações todas em cima da mesa, alertando para a urgência desse debate a partir de elementos práticos, mas que funcionam à perfeição no que se propõe discutir de fato.
Raphaëlle (Valeria Bruni Tedeschi, no limite do insuportável, construindo de modo afiado um tipo que leva à identificação pelos discursos bem colocados, mas que ao mesmo tempo afasta por uma falta de noção típica àqueles que conhecem melhor a teoria do que a prática) e Julie (Marina Foïs, assertiva em uma entrega multifacetada e complexa) estão se separando. Como o filho delas afirma, as duas “vivem brigando, mas sempre se acertam depois”. Porém, quanto mais se estica a corda, mais difícil será para essa voltar à sua posição de origem. Até o momento, enfim, em que se partirá sem mais conserto. É nesse ponto em que estão quando apresentadas ao espectador. Sem conseguir dormir, após o que se imagina mais uma discussão sem fim, a primeira pega o smartphone, no meio da madrugada, e começa a enviar dezenas de mensagens furiosas à amante. Detalhe: essa está exatamente ao seu lado, dormindo profundamente. O tom cômico e inusitado é mais do que necessário para preparar a audiência para o caos que irá se apresentar a seguir.
Quando o garoto, já na manhã seguinte, afirma estar com pressa pois deseja se juntar à manifestação pública que irá percorrer a Champs Élysées (principal avenida de Paris), as mães o incentivam a se envolver com um problema nacional, ainda que com ressalvas. Afinal, o ato dele deixa de ser apenas palavra, para se tornar concreto. Instantes depois, as duas, já na rua, acabam discutindo mais uma vez, e Raphaëlle, nervosa pelo ocorrido, tropeça e cai. A fratura do título, como se vê, pode ser literal. Machucada, precisa ir a um hospital verificar o estado do seu braço. Mas esse acidente particular é apenas reflexo de uma quebra – ou de uma divisão, como aponta o batismo internacional desse longa –mais grave e profunda. Está aqui se falando dos Coletes Amarelos, um movimento que tomou a França em 2018 e era bastante similar ao visto no Brasil três ou quatro anos antes. Nada mais do que trabalhadores cansados dos baixos salários, das condições precárias e dos altos preços. Reprimidos com violência pela polícia, não foram poucos os que viram na pele o registro desses ataques. Como o que aconteceu com Yann (Pio Marmaï, plena fúria contida, ainda que racional), aquele que, ao tentar o diálogo, terminou com uma perna quebrada.
A partir desse momento, a estrutura assumida é por demais teatral, o que de modo algum se mostra um demérito da produção. Pelo contrário, Catherine Corsini, realizadora acostumada a grandes cenários, como os vistos nos romances Um Belo Verão (2015) ou Um Amor Impossível (2018), por exemplo, aqui se mostra contida em um ambiente limitado, mas suficiente para espelhar um drama experimentado por todo um país. Raphaëlle é quem conhece as estatísticas e estudos, reconhece a importância do meio ambiente e do coletivo, mas está mais preocupada com sua separação amorosa e anseia por ser atendida de imediato para que a dor física que agora sente seja logo sanada. Yann, por sua vez, nada sabe de pesquisas ou diretrizes econômicas, mas está cansado de morar com a mãe, de não ter seu próprio carro e nem um salário decente que o permita levar a namorada para jantar fora no fim de semana. Qual deles votaria na situação, e qual estaria fazendo campanha pela oposição? As respostas parecem óbvias, mas, da mesma forma, não poderiam estar mais longe das ruas. Afinal, a situação que vivem é mais intrincada do que meras definições poderiam explicar. Quando todos gritam, enfim, ninguém chega a ser ouvido.
Apesar do cenário montado com cuidado e precisão, talvez a figura mais interessante deste quadro seja aquela sempre presente, e por isso mesmo, muitas vezes desapercebida. Nesse caso, quem assume tal função é a enfermeira Kim (a revelação Aïssatou Diallo Sagna, premiada com o César de Melhor Atriz Coadjuvante em sua estreia no cinema). Ela encarna a mulher que precisa se preocupar com a casa e com o trabalho, que tem que se fazer útil mesmo quando além de uma condição dita como aceitável, o tempo todo tendo que exercer sua capacidade de enxergar o problema do outro antes do seu, e que quando o desastre se aproxima, é também a primeira a ir para a linha de frente e sentir as consequências de um desastre anunciado. Ela é o elo de ligação entre Macron e La Pen, entre os que estão nas ruas e os que os observam do alto dos prédios, entre estrangeiros e locais, a que quer apenas aguentar até o final do turno e garantir mais um instante para respirar, fazendo o que dela se espera e criando o ambiente necessário para que aqueles ao seu redor, colegas e pacientes, também cumpram seus intentos. Mas quando A Fratura é que dita a ordem do dia, paliativos não mais funcionam: a intervenção precisa ser densa e permanente. Tanto no homem quanto na sociedade.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Robledo Milani | 8 |
Chico Fireman | 5 |
Francisco Carbone | 7 |
MÉDIA | 6.7 |
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