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Sinopse

Andrés e Pedro vivem uma realidade sofrida na periferia de Caracas. O pai tenta proteger o filho, mas este parece mais destemido diante da violência do local. Tudo piora quando Pedro acidentalmente mata outro garoto.

Crítica

A câmera trêmula, nervosa, acompanha uma brincadeira de criança, fruída pelos infantes de um conjunto habitacional venezuelano em meio a palavrões e a reprodução, ainda que em chave lúdica, da hostilidade que caracteriza o meio onde eles crescem. O cineasta Gustavo Rondón Córdova instila a sensação de inocência há muito perdida desde o princípio de A Família. Esse contexto é reforçado pelas tentativas de interação sexual. Mesmo parte de um jogo, é sintomático o anseio incessante dos, no máximo, pré-adolescentes por parecerem mais velhos do que realmente são, como se a autonomia precoce fosse lhes garantir algum tipo de vantagem. Pedro (Reggie Reyes) é um fruto típico desse entorno e, como tal, habituado, segundo nos é apresentado, a toda sorte de perigos, inclusive flertando com eles cotidianamente. Ao reagir violentamente à investida de um menor morador da favela vizinha, ele faz a transição erroneamente, sendo compelido a encarar coisas de gente grande.

Somos confrontados pela gravidade da situação, já que, na condição de agressor de um garoto diretamente ligado à criminalidade vigente, Pedro não poderá permanecer brincando de ser malandro, de atirar de faz de conta. Seu pai, Andrés (Giovanni García), entra em desespero, tratando de, antes de qualquer coisa, retirar o filho do ambiente. É, então, que temos a troca de protagonistas de A Família, pois, embora mantenhamo-nos colados no drama do jovem sem ciência abrangente do que seu ato inconsequente pode ter acarretado, o foco acaba sendo direcionado ao pai, ele sim, do alto da experiência que apenas os anos trazem, consciente das pressões ocasionadas pela conjuntura. É aí que o filme tem seu escopo aumentado, passando a abarcar, embora dentro de certas limitações, o cenário sócio-político da Venezuela. Para afastar o filho do perigo iminente, Andrés é praticamente obrigado a levá-lo junto em seus trabalhos, respectivamente como pedreiro e garçom de festas abastadas.

Por meio desses fachos surgidos entre as frestas da trama principal, percebemos aquilo que verdadeiramente a torna relevante e pungente. Afinal de contas, o que adiciona tensão ao itinerário de distanciamento dos protagonistas da ameaça é justamente a organicidade da realidade emulada cinematograficamente, méritos tanto do roteiro bem construído, que estabelece esse percurso de uma maneira instigante, quanto do registro visual, que denota a urgência das demandas. O realizador também aproveita as sutilezas para conferir mais amplitude à abordagem, como os detalhes devidamente ressaltados da relação de Andrés com seus patrões, seja a mulher classe média barganhando o preço da mão de obra ou os convidados pagando propina para receber a bebida reservada. Outro ponto importante, a ser destacado como valor do longa-metragem, é a interação entre pai e filho, que começa absolutamente conflituosa e gradativamente ganha contornos de reconhecimento. Pedro finalmente descobre o pai.

Embora utilize, sobretudo esteticamente, um conjunto de procedimentos bastante corriqueiros no que tange à captura de realidades terceiro-mundistas pobres, familiares ao brasileiro pelo que se convencionou, muitas vezes pejorativamente, chamar de “favela movie”, A Família sobressai pela habilidade de absorver elementos significativos, que estofam substancialmente a linha mestra da trama. Gustavo Rondón Córdova não espetaculariza a fuga, evitando observá-la pelo viés puramente da ação, porque está atento às circunstâncias que alimentam a propagação da violência, então tratada como sintoma de uma anomalia social originada longe das comunidades carentes, mas que sobre elas se lança com efeitos trágicos. O deslocamento ganha em emoção à medida que pai e filho demonstram finalmente achegar-se. Pedro, a despeito do comportamento inicialmente petulante e valente, passa a entender a gravidade de seus atos, bem como o peso de tornar-se realmente adulto.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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