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Sinopse

Ex-ativista que mora no subsolo do bar onde trabalha como barman, Boris é localizado por alguém do passado em busca de vingança.

Crítica

A começar pelo pôster, passando pelas cores saturadas banhadas por uma iluminação fria, chegando aos personagens esquisitos, tudo em A Estrela Cadente remete ao cinema do finlandês Aki Kaurismäki – que recentemente lançou Folhas de Outono (2023). Já que os realizadores Dominique Abel e Fiona Gordon escancaram essa inspiração, é sedutor partir das comparações. Enquanto Kaurismäki faz retratos melancólicos de gente simples, geralmente destacando a sua filiação à classe trabalhadora e extraindo do ordinário uma espécie de poesia na qual a ternura contrapõe a amargura, o casal Dominique/Fiona toma um caminho bem diferente. Eles fazem representações mais alegóricas de situações e pessoas excêntricas. Ainda diferentemente do colega da Finlândia, os dois não estão em busca de maneiras peculiares para encarar o que parece desimportante no cotidiano, pois apostam no artificialismo com contornos de cinema mudo para pintar quadros irônicos que flertam com o ridículo. Os personagens do longa-metragem belga não são pessoas comuns, pois estão inseridos numa história policial tipicamente cinematográfica, ou seja, repleta de coincidências complicadoras e tipos pouco usuais. Boris (Dominique Abel) é acusado de terrorismo e perseguido por Georges (Bruno Romy), homem que carrega uma arma com seu braço postiço. Mas o sujeito encurralado tem uma carta na manga.

Dom (Abel) é igualzinho a Boris, o que acende um alerta na amante e no amigo do acusado: que tal trocar os homens de lugar? Assim, se o assassino tiver êxito em sua missão acabará matando um Zé-Ninguém, não o seu ente querido. No cinema, essa troca de posição entre pessoas parecidas geralmente está a serviço da comédia. A quantos filmes você assistiu em que os personagens deslocados trocam os pés pelas mãos até o mal-entendido ser desfeito – não sem antes uma quantidade considerável de problemas? Pois em A Estrela Cadente há também uma de sátira desse tipo de premissa, pois nem sempre a troca de lugar entre Boris e Dom causa algum alvoroço, às vezes até parece que eles se encaixam tranquilamente na pele do outro. Dominique Abel e Fiona Gordon desenham a trama policial como uma grande farsa repleta de situações antinaturais e de tom predominantemente caricatural. Os personagens agem como se fossem autômatos ou estivessem condicionados por um destino sacana do qual é impossível escapar. Kayoko (Kaori Ito), a impetuosa esposa de Boris, é a mais exuberante dos coadjuvantes. Com seu vestido vermelho marcante, se locomove em determinados instantes como se estivesse dançando, o que confere às suas cenas o viés de apresentação. Toda cena quer ser performance.

Brincando com os códigos do filme policial, Dominique Abel e Fiona Gordon fazem de A Estrela Cadente uma produção curiosa, ora divertida em sua apropriação subversiva, ora um tanto arrastada pela monotonia que toma conta de algumas cenas que têm pouco a dizer. A ideia anteriormente citada de um destino brincalhão comandando a ação está implícita também nas coincidentes relações estabelecidas entre os personagens. Decalque propositalmente ridículo dos detetives clássicos do cinema, Fiona (Fiona) é contratada para encontrar um cão, mas logo arremessada nessa história que envolve ainda seu ex-marido e ativistas/terroristas que nunca imaginaria conhecer. O destino interliga tudo. Na medida em que a trama avança, essa teia de conexões humanas vai ganhando mais traços providenciais. Porém, isso não resulta de uma forçada de barra para encaixar facilmente os personagens numa situação. Trata-se de um gesto visando parodiar esse tipo de lugar-comum dos filmes investigativos. Pegando emprestado alguns pares de modelos consagrados anteriormente no cinema, os realizadores fazem um filme bem-humorado que, no fim das contas, está sempre dialogando com certos paradigmas – como a detetive, o gângster, a cúmplice, o homem errado na hora errada, a inocente tragada à situação etc. Desse modo, o resultado é uma reelaboração peculiar de tradições cinematográficas por meio da pegada graciosa e mimética característica dos filmes de Dominique Abel e Fiona Gordon.

Se os realizadores acertam no tom dessa versão bastante singular dos filmes policiais, o mesmo não pode ser dito da maneira como desenvolvem os personagens. Nisso também destoantes da visão humanista de Aki Kaurismäki, Dominique Abel e Fiona Gordon parecem mais preocupados com uma exibição de estilo, sobretudo a maneira de fazer cinema que aglutina elementos de outras formas de arte, como a circense, a dança e a mímica. O principal ponto fraco dos longas-metragens dirigidos pelo casal é essa asfixiante subordinação dos personagens à moldura na qual estão inseridos. Nota-se bem mais interesse da dupla de diretores pelo desenho de um universo repleto de citações do que pelo encaixe dos dramas humanos nesse ecossistema peculiar. É como se eles esgotassem as principais ideias ao construir um mundo próprio, não sabendo muito bem o que fazer quando é preciso preenchê-lo com vida pulsante. Todavia, em A Estrela Cadente essa falta de calor humano (algo que sobra nas obras de de Kaurismäki, a despeito dos comportamentos enrijecidos das pessoas) é em parte compensada pelo gosto saboroso de prato clássico reinterpretado com temperos extravagantes. Nesse caso, o filme policial tem seus parâmetros remodelados com reverência para caber no ideário estético e narrativo de um casal de realizadores que faz do cinema uma liga forjada a partir de outras artes.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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