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Sinopse

Mateus sai do interior de São Paulo rumo à capital em busca de trabalho num ferro velho. Luca comanda o local, mantendo nele um regime de trabalho análogo à escravidão. Mas, com o tempo Mateus aprende que até Luca tem um patrão ao qual responder.

Crítica

Embora os livros escolares pintem frequentemente a abolição da escravatura no Brasil como um ato heroico da monarquia da época, sabemos que a realidade histórica é bem diferente. Aliás, quando abrimos ainda mais o escopo e pesquisamos a suspensão desse regime desumano baseado em servidão e degradação, tomamos contato com uma insuspeita reorganização capitalista. Era preciso ter mais consumidores à disposição e, por isso, também os “novos tempos” tinha como pressuposto a existência de assalariados e não de escravos. Rapidamente, elites descobriram que era mais barato ter trabalhadores precarizados sob contrato do que continuar fomentando uma indústria moral e economicamente falida. Pensando na contemporaneidade, são frequentes os relatos revoltantes de relações laborais análogas à escravidão. Homens e mulheres transpiram em jornadas insalubres e são tratados como objetos de esforço e carga. 7 Prisioneiros, o mais novo filme do cineasta Alexandre Moratto – cuja estreia se deu com o não menos ótimo Sócrates (2019) – toca de modo agudo nessa fratura social exposta. O protagonista é Mateus (Christian Malheiros), jovem interiorano seduzido por promessas de uma vida melhor na capital paulista. Ele embarca na companhia de três amigos rumo ao futuro promissor. Já na entrada deles na cidade, fica evidente o deslumbramento que essa selva de pedra exerce. O olhar inocente não encontra a placidez das paisagens da infância, mas a aspereza do concreto.

Quem os recebe como seu novo patrão é Luca (Rodrigo Santoro), responsável pelo ferro velho onde os quatro trabalharão reutilizando fios de cobre e separando os metais valorizados das sucatas menos atrativas ao mercado. Logo o filme expõe a verdade por trás de todas as promessas feitas aos meninos com nomes bíblicos. Ao ser questionado sobre a falta de pagamento e a expansão do penoso expediente, o chefe mostra garras e presas para controlar os revoltosos. Ao tirar do bolso um caderninho com contas estapafúrdias que provariam dívidas astronômica dos recém-chegados (transporte, adiantamento à família, comida, alojamento, etc.), esse personagem reproduz uma dinâmica corriqueira nas histórias de abusos da boa vontade e da mão de obra alheia. Essa tática foi aplicada para controlar os escravizados alforriados, ao transformá-los em devedores eternos (cativos do débito). Também foi uma estratégia utilizada para mobilizar os chamados Soldados da Borracha, homens e mulheres que extraíram seringa para abastecer a Segunda Guerra Mundial em condições sub-humanas. Alexandre Moratto desenha de modo praticamente funcionalista esse microcosmo de exploração ao expor as etapas de uma lógica de trabalho baseada na violência como pleno garantidor de "fidelidade". Os interioranos repentinamente entendem que perderam o direito de ir e vir e que precisarão se submeter às brutalidades/desmandos se quiserem resistir e proteger as suas famílias. E o tilintar do molho de chaves do chefe-carcereiro gradativamente se torna um símbolo sonoro dessa situação dramática e tenebrosa.

7 Prisioneiros conta com um riquíssimo desenho sonoro que enfatiza diversos aspectos da experiência. Junto aos relances da cidade retratada como indiferente ao sofrimento, estão costuradas inúmeras sonoridades imprescindíveis a ponto de se tornarem gatilhos. Ao barulho das chaves farfalhando junto ao corpo do escravocrata moderno se soma a cacofonia da metrópole (carros, buzinas, atrito de metal, o sobe e desce dos portões de ferro, as batidas de aberturas) que abafa qualquer pedido desesperado de socorro. O coadjuvante de Antônio Abujamra chega a dizer algo do tipo: “podem gritar, mas ninguém vai ouvir”, evidenciando algo que os empregados perceberam pelo andamento do cotidiano. Porém, a constatação mais dramaticamente densa do longa-metragem está na relação complexa estabelecida entre Luca e Mateus. Com o passar dos dias, o patrão percebe que o protagonista é um empregado diferente, cuja inteligência pode ser mais bem utilizada. Aos poucos e organicamente, o filme desenha uma trajetória de aproximação entre os dois personagens que parecem habitar mundos antagônicos, mas que na verdade possuem mais semelhanças do que gostaríamos de assumir num primeiro momento. No começo, Luca é observado como um sujeito monstruoso, praticamente sem nuances ou contradições. No entanto, à medida que Mateus se torna o seu braço direito (não sem crises de consciência e arrependimentos), percebemos essa monstruosidade como um traço demasiadamente humano.

Aliados à sensibilidade de Alexandre Moratto para desenhar uma provocativa e improvável identificação, há os desempenhos excepcionais de Rodrigo Santoro e Christian Malheiros. Não estamos diante simplesmente de algoz e vítima, mas de um subproduto do neoliberalismo agressivo/desalmado e de alguém levado, por essa mesma retórica, a trair princípios e desejar um lugar à mesa dos poderosos. O educador Paulo Freire disse certa vez: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”. E é isso o que acontece com Mateus, considerando, ainda, as engrenagens do capitalismo selvagem adicionadas a essa falta de conscientização. O menino que caiu numa armadilha consegue paulatinamente a confiança de tirano e não encontra motivos para fazer o certo se isso significar sofrer novamente num servilismo cruel. 7 Prisioneiros traça tragédias pessoais em meio ao acurado e sintético diagnóstico de uma realidade social incômoda. No fim das contas, Luca não é bem “o” chefe, mas outro capacho pervertido por um sistema inteligente e doente. Felizmente, o filme não trata as constatações como rótulos, preferindo estreitar o olhar às contradições humanas, bem como às complexidades pessoais e coletivas que não se prestam a julgamentos morais. A câmera é nervosa, pois atenta à tensão. A trilha sonora realça os dramas, mas sem nos induzir excessivamente. Por fim, o Luca de Santoro e o Mateus de Malheiros se encontram no meio do caminho entre a necessidade de sobreviver e a corrupção como alternativa que retroalimenta uma estrutura perversa capaz de se regenerar. O capitalismo é a Hidra de Lerna com várias cabeças. E ela age rápido para desvirtuar eventuais ameaças.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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