Crítica


8

Leitores


6 votos 7.4

Onde Assistir

Sinopse

O jovem Sócrates vive apenas com a mãe num bairro popular em Santos. Quando ela morre, o garoto menor de idade precisa descobrir sozinho como encontrar dinheiro, em quem confiar, e como sobreviver a uma série de provações diárias. Enquanto procura um meio para se sustentar e para sepultar a própria mãe, o jovem negro e gay se descobre atraído por um trabalhador sobre quem conhece muito pouco.

Crítica

Embora o rosto do adolescente Sócrates (Christian Malheiros) esteja presente na maioria das imagens, o espectador demora para compreender quem ele é, de onde vem, o que deseja. O protagonista é descrito, desde a primeira cena, como um corpo em reação: após perceber o cadáver da mãe na cama, ele imediatamente encontra alternativas – mais ou menos bem-sucedidas - para conseguir trabalho, dinheiro, uma casa para morar. Sócrates nunca se apieda sobre si mesmo, e o filme tampouco se dedica a explorar a tristeza. O garoto, menor de idade e sem educação formal, não pode se dar ao luxo de passar os dias lamentando a sua sorte – a vida precisa continuar.

Apesar de se configurar com as ferramentas temáticas do drama, o filme do diretor Alexandre Moratto possui o ritmo e a intensidade do suspense, ou mesmo do filme de ação. Cada cena é impregnada de uma brutalidade ainda mais forte porque silenciosa: o encontro com um colega numa construção civil imediatamente leva a uma briga, um encontro amoroso também se confunde com a luta, a descoberta do paradeiro do pai se converte em pesadelo, os encontros com patrões de Sócrates e da falecida mãe se convertem em cenas de humilhação e raiva contidas. Talvez desde Praia do Futuro (2014) o cinema brasileiro não tivesse construído uma representação tão seca e brutal dos afetos, especialmente da homoafetividade.

Christian Malheiros compõe o personagem através do semblante fechado, beirando a explosão a cada novo encontro. A intensidade do olhar, unida à rigidez do corpo, fazem do jovem menos uma vítima do que um combatente tentando utilizar sua miséria a seu favor – afinal, Sócrates nada tem a perder. Sem mãe, sem dinheiro, sem afeto, ele pode enfim canalizar suas pulsões de vida (o sexo) e de morte (o ataque a quem o despreza). Trabalhando os poucos diálogos de maneira ríspida, sem projetar a voz, o ator condensa a ideia do embrutecimento como estratégia de sobrevivência. Alguns atores coadjuvantes soam menos confortáveis com os textos, às vezes escritos demais para o registro oral, mas as interações estáticas e fragmentadas se adequam à trajetória errante do jovem abandonado pela sociedade.

Felizmente, Sócrates foge tanto à lamentação da miséria quanto à martirização do protagonista, típicas de jornadas de “um-contra-todos”. Dispondo de recursos de produção limitados, Moratto demonstra refinamento estético, posicionando-se ao mesmo tempo bem próximo de seu protagonista, porém sem julgá-lo nem sublinhar uma tragédia que se apresenta, por si só, de modo bastante forte. Por isso, as melhores cenas de catarse são silenciosas (a recusa do choro no banheiro, a troca de olhares com o interesse amoroso num bar, a conclusão), sem trilha sonora, sem grandes movimentos de câmera. Os ruídos ao redor são ora apagados, ora incompreensíveis, retratando o estado de espírito do garoto. Saem de cena os adornos destinados a reforçar a opressão do garoto por ser negro, pobre, gay, morador da periferia: estes elementos são misturados de modo orgânico a trama.

Em paralelo, evita-se apontar a vilania de um ou outro indivíduo: para o projeto, o grande responsável pelo calvário de Sócrates é o sistema em que está inserido, embrutecendo as pessoas de maneiras equivalentes, apagando o potencial de empatia em cada um, sem que estejam movidos pelo prazer de prejudicar o outro. Ao invés do imaginário dicotômico da favela violenta contra a cidade caótica, o filme apaga fronteiras ao acompanhar o garoto entre diversos espaços, entre casas, corredores e ruas, mergulhando o espectador numa geografia de exclusão que vai da periferia ao centro, do concreto à praia. Mesmo o mar, símbolo clássico de redenção para personagens desesperançosos, se recusa a fornecer uma alternativa de felicidade a Sócrates. Ao menos, ele terá concluído simbolicamente o destino da mãe, presente no início e no fim. Para o espectador, não restará uma única cena de catarse convidando ao choro. Como o protagonista, somos destinados a deixar o grito preso na garganta.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *