Há muito caminho a ser percorrido para que o cinema brasileiro apresente equivalência entre o número de diretores e o de diretoras atuantes. Na verdade, essa jornada, ainda longe de ter um percurso satisfatório, emana das demais esferas da sociedade, nas quais a mulher ainda sofre com bem menos acesso às posições de chefia/decisão e com salários substancialmente menores do que os dos homens desempenhando a mesma função. Todavia, a despeito de todo esse panorama desfavorável, há inúmeros filme incríveis dirigidos por mulheres no Brasil, como bem mostra esse pequeno, mas sintomático, recorte promovido numa eleição interna entre editores, redatores e colaboradores do Papo de Cinema. O critério norteador englobava produções também codirigidas, mas apenas uma delas entrou nesse Top 10. Também estipulamos que os votantes elencassem 20 produções, com o impeditivo de repetir cineastas, ou seja, apenas um filme por assinatura. O resultado é guiado por essa ideia de restringir a um filme por diretora, uma vez que nosso intuito é, mesmo que timidamente, lançar luz sobre a pluralidade desse recorte. Então, sem mais delongas, confira quais os dez melhores filmes brasileiros dirigidos por mulheres na opinião do Papo de Cinema.
Hoje, de Tata Amaral
“Trata-se de um trabalho bastante simples, que se sustenta nos preceitos mais básicos de qualquer obra dramática: bons intérpretes e um texto vigoroso, com diálogos excelentes que realmente nos levam a algum lugar, fazendo com o que o espectador saia da sessão melhor e mais enriquecido do que quando entrou. Sua dificuldade está, portanto, justamente nesta aparente simplicidade. Sem o virtuosismo e as traquinagens de edição atualmente tão em voga, torna-se complicado abster-se de tudo, deixar o mundo real do lado de fora, e definitivamente penetrar no universo aqui proposto. Mas aqueles que assim fizerem não somente serão recompensados com um longa surpreendente, como também ganharão uma aula de história e humanismo”. Confira aqui a nossa crítica na íntegra.
Sinfonia da Necrópole, de Juliana Rojas
“Se o público fica preso aos acontecimentos envolvendo os dois protagonistas, não será somente este o único atrativo do filme. Afinal, estamos falando de um musical, e canções surgem a todo instante, defendidas e interpretadas pelos próprios atores, que mesmo sem serem cantores profissionais – a maioria, ao menos – desempenham com competência o desafio ao qual são propostos. O inusitado possui seu charme, e este diferencial se revela de peso dentro das possibilidades do filme. Não há muito mais a se discorrer sobre a trama – os vivos seguem levando suas vidas, os mortos até se arriscam num balé improvisado, e aqueles responsáveis pelos outros, independente de que lado estejam, continuam com seus afazeres, buscando qualquer tipo de resultado”. Confira aqui a nossa crítica na íntegra.
Narradores de Javé, de Eliane Caffé
“Comédia dramática escrita e dirigida por Eliane Caffé que conquista o espectador não apenas pelo inusitado da proposta e a forma como uma ameaça externa é capaz de mobilizar toda uma comunidade – um sentimento facilmente relacionável – mas também pela excelência de um elenco em plena sintonia (…) um dos melhores filmes produzidos pelo cinema nacional no início do século XXI, e uma alegação dessa não se faz de modo leviano – na conta, pesa tanto a excelência técnica como também a habilidade da realizadora em equilibrar o pitoresco e inesperado com aquilo que é muito próprio do brasileiro. Ao mesmo tempo em que é único em sua originalidade, consegue ser universal pelos temas que aborda, como inveja, orgulho, paixão e honestidade – sentimentos que podem ser identificados entre os diversos tipos que povoam o desenrolar da história”. Confira aqui a nossa crítica na íntegra.
Carlota Joaquina: A Princesa do Brazil, de Carla Camurati
“A percepção da malandragem e do “jeitinho brasileiro” contamina não apenas a construção dos personagens, mas o desenvolvimento do filme como um todo. O roteiro se move anarquicamente ao longo dos anos e dos cenários, abandonando personagens importantes (como a própria Carlota) para resgatá-los mais tarde, fazendo longos desvios e retardando em mais de 40 minutos a chegada ao Brasil. Entre trovões animados, música de aventura e devaneios onde Carlota joga o marido no fundo do poço, o absurdo jamais abandona a narrativa. Talvez este seja um dos elementos mais divertidos do filme: perceber que a História não se move de maneira linear e inequívoca, com uma versão única. Ela está repleta de causos mal contados, anedotas esquecidas, reinvenções pelo ponto de vista dos vencedores ou interpretações partidárias”. Confira aqui a nossa crítica na íntegra.
O Animal Cordial, de Gabriela Amaral Almeida
“Gabriela Amaral Almeida sabe bem o que fazer com as peças que junta, e se o resultado do quadro que desenha não é para todos os estômagos, ao menos não desaponta aqueles dispostos a tal mergulho. Assim como estão ao seu lado os protagonistas. Há muito tempo Murilo Benício não aparecia tão imerso em um personagem, e se Irandhir Santos demonstra mais uma vez uma impressionante capacidade de desaparecer sob o tipo de constrói, talvez seja Luciana Paes a maior surpresa, entregando uma figura tão subserviente quanto inesperada, da qual tudo o que se sabe pode ser contradito em seguida. (…) O Animal Cordial é tanto uma fábula sobre nossa sociedade e a vontade imperativa de um engolir o outro como um conto de horror alegórico a respeito de elementos descartáveis que encontram utilidade apenas como alimento do mais forte”. Confira aqui a nossa crítica na íntegra.
Terra Estrangeira, de Daniela Thomas, Walter Salles
“Não esconde, pelo contrário, reforça a vontade de refletir os anseios de um país e, por conseguinte, de seu povo, em meio a transformações vitais. Recém-liberto do jugo da extensa ditadura civil-militar, e, portanto, sem nortes muito claros, o Brasil se refazia dos escombros, ansiando por coisas boas na nova era pós-redemocratização (…) Em Terra Estrangeira a imagem possui uma potência singular, o chiaroscuro serve justamente para mostrar um mundo dividido, fracionado, onde a luz nem sempre consegue opor-se à sombra como deveria. A desilusão é latente, seja no comportamento das pessoas, especialmente o dos protagonistas calejados, ou no acúmulo de empecilhos que surgem durante a trama, dando margem à prevalência da obscuridade, de forças nefastas”. Confira aqui a nossa crítica na íntegra.
Que Bom te Ver Viva, de Lúcia Murat
Poucos filmes tocaram tão contundentemente nas feridas dos mais de 20 anos da ditadura civil-militar que vigorou do Brasil entre 1964 e 1985. O longa-metragem de Lúcia Murat é um exemplo de coragem. A autora, ela própria torturada covardemente nos porões do autoritarismo dos milicos, conta a história de várias mulheres que pegaram em armas contra o regime, pagando preços exorbitantes por seu ímpeto de resistência. Os depoimentos dessas sobreviventes que continuaram suas vidas, cada uma à sua maneira, a despeito das marcas indeléveis da violência estatal impressas em suas existências, são atravessados pela interpretação visceral de Irene Ravache como uma espécie de figura-amálgama. Ela representa um pouco do que todas essas mulheres expressam dolorosamente. Assim sendo, o belíssimo longa entremeia com muita potência a ficção e o documentário, sendo um dos filmes mais importantes quando o assunto são os anos de chumbo e a brutalidade dos poderosos golpistas de outrora.
Como Nossos Pais, de Lais Bodanzky
“Toca em pontos universais, com os quais todos nos deparamos ao longo da vida. A tensão geracional estabelecida entre Rosa e Clarisse é tão bem construída que se transforma numa espécie de linha-mestra. No desenvolvimento dessa relação mãe/filha, com senões relativizados espontaneamente, ao sabor das descobertas e da abertura à perspectiva do outro, num exercício de empatia frequente e determinante, Laís fundamenta seu longa-metragem entrecortado por afetos de diversas fontes. Mesmo a coesão do excepcional elenco é fruto de sua direção. Ela demonstra carinho pelos personagens, não importando o tamanho de suas participações. Por lançar a eles um olhar generoso, a realizadora anula quaisquer possibilidades de julgamentos baseados no moralismo vigente”. Confira aqui a nossa crítica na íntegra.
Que Horas ela Volta?, de Anna Muylaert
“A situação construída no roteiro de Muylaert permite ao filme alcançar a rara condição de transitar entre duas camadas de interpretação distintas. A primeira e mais superficial traz uma boa história de determinação que evita fórmulas fáceis e truques de estilo. No entanto, é no segundo nível, ao debater a segregação social, que o longa surge como um dos melhores feitos no Brasil nos últimos tempos. Val e Jéssica são o mesmo país em séculos diferentes. Mãe e filha dividem o mesmo código genético, mas tornaram-se produto dos seus respectivos tempos – e da crença embutida em cada uma das épocas. Por isso, pensam o mundo e seus lugares nele de maneira completamente condicionada. Por ter sobrevivido às custas dos patrões, a personagem interpretada com maestria por Regina Casé consagrou a casa como um templo e, em seus espaços, instituiu fronteiras invisíveis do permitido e do proibido, do bom e do ruim; na construção do certo e do errado, erigiu o lar que imaginou merecer”. Confira aqui a nossa crítica na íntegra.
A Hora da Estrela, de Suzana Amaral
“Nada mais difícil do que adaptar uma obra tão singular quanto A Hora da Estrela para o cinema. A transposição precisou abandonar a figura do narrador, Rodrigo S.M., de grande importância para o livro, algo que, para quem apenas conhece a versão cinematográfica, não gera prejuízos. Para que o filme funcionasse, era necessário escolher uma atriz que pudesse transmitir a ingenuidade da protagonista, uma pessoa com tão pouco senso de propósito que costuma gerar pena em seus interlocutores. Marcélia Cartaxo, em sua estreia no cinema, vive Macabéa com a mais do que necessária fragilidade. A atriz capricha na falta de segurança da personagem, como se cada frase que proferisse em uma conversa necessitasse um pedido de desculpas posterior”. Confira aqui a nossa crítica na íntegra.
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