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Sinopse

Após a morte de sua mãe, um jovem brasileiro decide deixar o Brasil e ir para a Europa, tentar conhecer a terra natal de sua mãe, a Espanha. Afetado pela situação econômica do país no início dos anos 1990, Paco encontra dificuldades para pagar sua viagem, e por isso, aceita entregar um pacote misterioso em Portugal, em troca de dinheiro.

Crítica

As primeiras imagens deste drama dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas mostram uma São Paulo estilizada, praticamente expressionista, méritos da belíssima fotografia de Walter Carvalho. Paco (Fernando Alves Pinto), jovem aspirante a ator teatral, mora com a mãe, Manuela (Laura Cardoso), nessa selva de pedra constantemente lembrada por sua suposta impessoalidade. A senhora deseja voltar à sua terra natal, a pequena San Sebastián, na Espanha. O filho tem planos próprios, estes completamente alterados quando o anúncio desgraçado, e real, do confisco das cadernetas de poupança pelo governo Collor vitima fatalmente a personagem de Laura Cardoso. Terra Estrangeira não esconde, pelo contrário, reforça a vontade de refletir os anseios de um país e, por conseguinte, de seu povo, em meio a transformações vitais. Recém-liberto do jugo da extensa ditadura civil-militar, e, portanto, sem nortes muito claros, o Brasil se refazia dos escombros, ansiando por coisas boas na nova era pós-redemocratização.

Levado pelas dores do luto e do insucesso no palco – este visto numa cena sobressalente pela plasticidade, com a iluminação denotando o desespero profundo diante do esquecimento das falas – Paco vai a Portugal, contratado pelo patrício com cara e jeito de trambiqueiro, interpretado por Luís Melo. Em paralelo à trajetória desse rapaz brasileiro rumo à Europa, vemos o conturbado cotidiano do casal formado por Alex (Fernanda Torres), atendente de um boteco, e Miguel (Alexandre Borges), músico de formação, mas que sobrevive, por necessidade, de contrabandos. Walter Salles e Daniela Thomas mostram vários retornos simbólicos dos colonizados ao país colonizador, afinal de contas além dos personagens que partem do Brasil em busca de oportunidades raras nas terras tupiniquins, temos angolanos deambulando por uma Lisboa decadente, que tampouco oferece perspectivas de um amanhã promissor. Terra Estrangeira fala de deslocamento, da sensação de não pertencimento.

Essa desorientação, tanto geográfica quanto existencial, fica clara nas andanças de Paco pela cidade que o oprime. Sua missão é entregar um violino, ao que parece raro, para alguém desconhecido, no caso Miguel, assassinado antes por não cumprir a sua parte no jogo sórdido ao qual se presta. É nesse ponto que os caminhos de Paco e Alex se cruzam, gerando uma força que oscila entre a repulsa e a atração. Até o envolvimento fortuito deles numa noite gélida é destituído de romance, o que evidencia as crises profundas que acometem ambos, de maneiras distintas. Em Terra Estrangeira a imagem possui uma potência singular, o chiaroscuro serve justamente para mostrar um mundo dividido, fracionado, onde a luz nem sempre consegue opor-se à sombra como deveria. A desilusão é latente, seja no comportamento das pessoas, especialmente o dos protagonistas calejados, ou no acúmulo de empecilhos que surgem durante a trama, dando margem à prevalência da obscuridade, de forças nefastas.

Manifestando o embate entre o ímpeto da juventude e as barreiras impostas pela conjuntura sócio-política, seja a do Brasil, antes chamado de pais do futuro, ou a da Europa, o Velho Continente decrépito, simbolizado pelo navio encalhado à beira da praia, Terra Estrangeira se apresenta como um filme pungente, bonito em sua abordagem dura e melancólica da realidade. A melodia de Vapor Barato, um dos grandes clássicos da MPB, acompanha sutilmente boa parte da viagem de Paco e Alex rumo a novas transposições de divisas para, então, tentar a felicidade. Quando tudo se direciona ao terreno da indefinição, com ares de possível tragédia, a voz de Gal Costa substitui a de Fernanda Torres, atriz que até ali cantarolava a música, o que reforça a desesperança e o nó na garganta. Não se trata de ser pessimista. Walter Salles e Daniela Thomas apenas capturam o estado das coisas, contrapondo valores, sendo o humano maior que o das joias ou o do violino raro, segundo suas manifestadas convicções.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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