Uma bicicleta e uma geladeira. Dois dos curtas-metragens de ficção indicados ao Oscar 2021 giram em torno de objetos cotidianos de consumo. Em ambos os casos, a propriedade privada constitui o ponto de partida para uma discussão ampla sobre racismo, xenofobia, machismo e intolerância religiosa. O palestino The Present (2020), dirigido por Farah Nabulsi, e o israelense White Eye (2019), dirigido por Tomer Shushan, podem ser considerados fábulas sobre o preconceito. No primeiro, um homem palestino (Saleh Bakri) decide comprar uma geladeira de presente de casamento à esposa. No entanto, a loja mais próxima se encontra na Cisjordânia, o que implica passar pela vistoria humilhante dos guardas na fronteira. Ironicamente, o item comprado não passa pelo estreito portão destinado a limitar a entrada de cidadãos estrangeiros. A fronteira é muito mais extensa, porém a única passagem permitida por lei se resume aos poucos centímetros de comprimento, insuficientes para uma geladeira.

 

The Present

 

No segundo filme, um rapaz acredita ter encontrado na rua sua bicicleta roubada recentemente. A parte amassada continua lá, assim como o pequeno adesivo colado pela namorada. No entanto, o objeto está preso a um cadeado. As autoridades são chamadas, o que produz acusações de fraude e sugestões de roubo atribuídas a um imigrante ilegal da Eritreia. Instala-se um teatro do absurdo, com ações progressivamente mais graves ocorrendo em torno da bicicleta, presa ao mesmo lugar. Os curtas-metragens apostam na imobilidade das coisas para evocar a liberdade ilusória das pessoas. A geladeira está empacada, e a bicicleta, presa. O pai de família não pode atravessar a fronteira, apesar de viver a poucos metros da guarita policial; e o operário de uma fábrica, que mal fala hebreu, não pode sair do local de trabalho, com medo de ter sua situação legal descoberta pelas autoridades. O dono da bicicleta tampouco pode deixar aquele local, com medo de ter o objeto furtado novamente, enquanto outros imigrantes ilegais se escondem num frigorífico. Trata-se de narrativas que acentuam ao limite do absurdo os muros erguidos entre nações.

A escolha transparece um momento interessante para o Oscar, quando a indústria recolhe os cacos de um ano de crise, com muitas mortes de trabalhadores, demissões, fechamento das salas de cinema e queda no faturamento das empresas. Estas narrativas dialogam com os Estados Unidos de Donald Trump, ex-presidente populista, apaixonado pelas guerras reais e imaginárias, e pelo falso sentimento de proteção promovido por muros. A cena de Yusef preso durante horas num cercado sem real motivo para tal, diante do olhar apavorado da filha pequena, ilustra a política de separação de pais e filhos na fronteira entre Estados Unidos e México. Já a prisão arbitrária do trabalhador eritreu remete às políticas discriminatórias visando especificamente os imigrantes árabes (o arab ban). Embora se situem em Israel e Palestina, as histórias dialogam com práticas segregacionistas de diversas partes do globo.

 

White Eye

 

Assim, The Present e White Eye refletem sobre os conflitos entre Israel e Palestina sem menções explícitas a presidentes, governos nem exércitos. Eles privilegiam o impacto da guerra na vida cotidiana de indivíduos sem qualquer relação direta com a ocupação israelense, nem com a pressão internacional. Tanto Nabulsi quanto Shushan buscam no dilema seu aspecto universal (a crise nas famílias, o medo da morte). Somem os letreiros explicativos, as narrações e demais ferramentas didáticas: os curtas evitam apelar ao conhecimento geopolítico do espectador, solicitando apenas o senso de empatia. Em consequência, podem ser absorvidos com facilidade pela indústria norte-americana, que não se vê diretamente responsabilizada pelo apoio aos ataques israelenses, ou pelas campanhas difamatórias contra o mundo árabe.

Sobretudo, estes filmes superam a problemática conciliação pelo afeto. O Oscar tem sido conhecido por premiar projetos em que lados antagônicos firmam uma trégua e se tornam amigos, num recurso tão ingênuo quanto simplista. Os conflitos passados, a reparação histórica, as políticas públicas, as desigualdades sociais são esquecidos: basta dar as mãos e se abrir ao afeto para superar preconceitos. Talvez por serem não-americanos, ambos os títulos passam longe do bom-mocismo apolítico de Histórias Cruzadas (2011) e Green Book: O Guia (2018). Nos curtas-metragens, os conflitos se suspendem em meio ao caos, sem resolução: os policiais da fronteira continuam dominantes e truculentos, e as ameaças policiais persistem contra imigrantes em Israel. Os símbolos de ambas as histórias perdem sua utilidade: nunca veremos a bicicleta em movimento, nem a geladeira funcionando. Desenham-se narrativas de impedimento, ao invés de trânsito. Por isso, se atêm na maior parte do tempo a uma esquina e a uma guarita.

 

Histórias Cruzadas

 

A convivência destes curtas na premiação constitui um fator simbólico por si só. Os votantes não teriam como imaginar quais títulos seriam indicados, porém a lista de finalistas na categoria de curta-metragem de ficção provoca um espelhamento entre a obra palestina e a obra israelense, que possuem mais semelhanças do que diferenças. Ao invés de se defenderem contra a nação vizinha, criticam em uníssono o absurdo desta oposição. Considerando o caráter evidentemente político e racial dos demais títulos indicados, percebe-se o quanto a indústria norte-americana pode ser politizada no que diz respeito ao conteúdo alheio. Quem dera as principais categorias da premiação, reservadas aos longas-metragens de ficção, carregassem igual assertividade política e étnico-racial. Ora, vamos com calma: o Oscar sequer indica curtas-metragens de cunho experimental ou radical na forma, preferindo obras narrativas e lineares, espécies de minilongas elaborados por cineastas que Hollywood gostaria de ver desenvolvendo longas-metragens no futuro. A indicação e o troféu representam menos uma recompensa do que um investimento.

No entanto, é sempre pelas frestas que se entra algum sopro de renovação: os documentários, as animações, os curtas-metragens e os filmes internacionais (antigos “filmes estrangeiros”) seguem demonstrando qualidade muito superior àquela da seleção principal, a mais prestigiosa, e também mais preocupada em agradar a grandes produtores, atores e diretores. Longe dos holofotes, sem pretensões mercadológicas e livre da extensa temporada de premiações quando os longas se digladiam durante meses, a competição de curtas-metragens possui a liberdade de arriscar tanto no discurso quanto na forma. Por enquanto, obtém mais sucesso no primeiro do que no segundo quesito. The Present e White Eye nos lembram que a inovação sempre vem das margens – tanto na sociedade quanto na arte.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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