Roteirista tarimbado, Álvaro Campos teve durante muito tempo seu nome atrelado criativamente a programas televisivos de cunho cômico, tais como Os Buchas (2009) e Os Gozadores (2010). Depois do curta-metragem Leo & Carol (2015), repetiu a parceria com o ator Gigante Léo, dessa vez estreando nas ficções de longa-metragem com Altas Expectativas (2017), que passou por diversos festivais nacionais e internacionais, chegando a integrar a programação do Miami Film Festival. Mesmo nesse filme de pegada romântica, o humor está presente, asseverando uma espécie de marca registrada dos trabalhos de Álvaro. Agora, em parceria com Claudio Manoel e Alê Braga, ele lança o documentário Tá Rindo de Quê? (2018), cujo foco é o escrutínio do trabalho dos humoristas nos duros tempos da Ditadura Civil-Militar que governou o Brasil com muita severidade, repressão e violência por mais de 20 anos. Conversamos com Álvaro para saber sobre o processo colaborativo de direção, bem como acerca das minúcias do longa-metragem que chega nesta quinta-feira, 28, aos cinemas. Confira mais este Papo de Cinema exclusivo.
O filme tem uma ótima pesquisa. Como se deu esse processo, presumo, laborioso?
Foi um ano e meio trabalhando apenas na pesquisa. Entrevistamos mais de 70 pessoas, tivemos dois times que correram atrás de todo o material ligado a humor e política. Concatenar isso foi o mais difícil, inclusive porque optamos por não teorizar ou estabelecer teses. Íamos rabiscando o roteiro a partir dessa vasta amostragem. O discurso dos personagens determinou a narrativa. Fomos abandonando as nossas visões particulares durante esse processo. No filme, estamos falando dos ídolos do Claudio Manoel. E o legal é ver essa galera, geralmente atrelada ao viés escapista, puramente de entretenimento, falando sobre a relação entre humor e ditadura. Ficamos fascinados com as vozes deles. O projeto é desafiante porque tínhamos de fazer um retrato amplo de 20 anos.
Como se deu o processo dessa direção a seis mãos, com o Claudio Manoel e o Alê Braga?
Somos muito diferentes. Politicamente, possuímos cabeças opostas. Isso foi ótimo para capturarmos esse tempo em particular. Foi fascinante como dialogamos na criação. Percebi que a potência do filme está na captura da época pela visão dos comediantes, dessas pessoas que fazem com que a gente não leve tudo tão a sério. A direção conjunta era como remar para a mesma direção a fim de gerar um retrato plural. Tanto a direita quanto a esquerda têm portas de entrada ali. Partido a gente acaba sempre tomando, afinal escolhemos imagens. Mas fizemos um esforço danado de deixar que a pluralidade surgisse, promovendo pontes entre ontem e hoje, por exemplo, no segmento da discussão sobre a mulher no humor. Apenas as mulheres falam ali, nenhum homem, e isso era fundamental para a gente.
Vocês não conseguiram falar com alguém? Tiveram de abdicar de depoimentos na montagem?
Fizemos um esforço, até por respeito, para ter todo mundo no corte final. São pessoas de idade avançada, que se dispuseram a testemunhar, a ficar duas horas sob holofotes. Lamentamos em dois casos, pois queríamos depoimentos do Jô Soares e do Renato Aragão, mas infelizmente não rolou. O Jô por questões pessoais, de disponibilidade. Porém, ele foi incrível conosco, liberando as imagens em segundos, por ter adorado o conceito. O Renato não se sentiu à vontade para falar com a gente sobre comédia e seu viés politico. E eu entendo, porque no revisionismo que temos hoje, os Trapalhões acabam sofrendo um pouco. No filme conseguimos outras coisas, como capturar a relação pessoal do Jaguar com a sua censora. Tem, também, aquilo do Daniel Filho falando das idas à Brasília, como se estivesse pedindo favores ao censor, ou seja, em ambos os casos há áreas cinzentas.
Em certo momento, especificamente quando o filme se debruça sobre o Chico Anysio, senti o foco momentaneamente distanciado da relação estrita com a ditadura. Isso foi deliberado?
Tem dois motivos principais para isso acontecer. O primeiro é a honestidade com a época, exatamente por deixarmos os personagens se expressarem e contar as próprias histórias. O grosso do trabalho de muitos desses humoristas não guardava relação com a ditadura. Mas, claro, havia esquetes políticos, como um que infelizmente não entrou no corte final, em que o Renato Aragão denuncia abuso policial. Hilário. Porém, havia também puro entretenimento durante o regime. E o segundo aspecto foi a dificuldade de encontrar arquivo dos anos 60 e 70. Não há material abundante e infinito. Muita coisa se perdeu ou não tem qualidade técnica para ser exibida nos cinemas. Então, mesmo que quiséssemos forçar uma barra, falando 100% de comédia e política, com o orçamento e o tempo disponíveis isso não seria possível. Esse roteiro acabou sendo montado na ilha através das manifestações dos depoentes.
Vivemos tempos turbulentos, em que, inclusive, a comédia é posta em xeque. Todavia, você acredita que o humor ainda pode ser uma ferramenta vital, como foi no passado?
É vital, mais que nunca. Precisamos resgatar a leveza dos debates, encontrar mais prazer em conversar, voltar a ter tesão por isso. Independentemente do interlocutor. Uma ferramenta fundamental para desmontar a complexidade disso de conversar com quem pensa diferente é o humor, aquele bem intencionado, o que nos diz: “nada deve ser levado tão a sério ao ponto de nos afastar”. O humor é fundamental nesse sentido. Que as pessoas se enxerguem para debater sobre a coisa mais cotidiana do mundo, que é a política. Se o humor for concatenado dessa maneira, derrubando a polaridade, todo mundo tem a ganhar.
(Entrevista concedida por telefone em fevereiro de 2019)
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