A cineasta Alice Furtado estreou recentemente no circuito comercial brasileiro com o seu primeiro longa-metragem, Sem Seu Sangue (2019). O filme, cuja première mundial se deu na Quinzena dos Realizadores (uma das mostras paralelas mais importantes do Festival de Cannes), mostra uma jovem aparentemente apática que vislumbra o amor como uma possibilidade de chacoalhar a pasmaceira de seu cotidiano adolescente. A fatalidade que sobrevêm a esses momentos esparsos de felicidade arremessa a protagonista num redemoinho de tristezas, como se fizesse dela uma ilha de melancolia cercada de autocomiseração por todos os lados. Na entrevista exclusiva que concedeu ao Papo de Cinema por telefone, ela falou sobre as inspirações para a história, a importância dos mecanismos de fragmentação visual e o que esperar do futuro num país em que a Cultura está sob violento ataque. Confira!
No começo chama atenção a fragmentação, a sua pouca disposição de oferecer contextos, mas de focar nos gestos e nos detalhes. A que responde esse ímpeto de fracionamento?
Isso foi uma decisão que tomei pensando exatamente na linguagem do filme. Foi quando entendi que para estarmos colados nas sensações da Silvia, vivenciando isso de modo mais próximo, precisaríamos ver como ela vê, ou seja, de modo fragmentado e descontinuado. Me pareceu que, nesse sentido, sempre que tivéssemos o contexto perderíamos essa conexão com a personagem, pois seriamos espectadores privilegiados, vendo de fora, não partilhando essa visão parcial. E realmente seguimos à risca isso. Tentávamos nos colocar no vórtex das cenas, no interior delas, não de um jeito distanciado, externo. Era imprescindível estar junto dela.
Como foi o processo de seleção da Luiza Kosovski? Ela entregou exatamente o que você tinha em mente com a protagonista ou trouxe a ela elementos próprios?
Trabalhei com um produtor de elenco, o Giovani Barros, que conhece o projeto desde cedo. Ficamos um tempão tentando encontrar os protagonistas. Era sempre difícil chegar àquilo que eu imaginava. O Giovani estava um pouco angustiado de não ter ninguém no horizonte para o casting. Até que num dia ele foi ao Tablado, no Rio de Janeiro. A Luiza estava assistindo, nem participando. Mas, por sua postura e jeito de olhar, o Giovani sentiu a carga de Silvia. Ele me ligou dizendo que tinha achado a menina. Quando a conheci fiquei muito impressionada, ela era bem novinha, tinha uma coisa de menina, mas quando começava a falar exibia profundidade, até algo de sombrio. Isso, apesar de ser super doce e leve. No momento do casting, nem tive acesso a esse lado terno dela. E a Luiza construiu muitas coisas com os recursos e a imaginação próprios. Posso dizer que eu e ela tivemos um trabalho telepático.
A Silvia tem seu corpo quase petrificado pela dor da perda. De onde você tirou subsídios para apresentar esse percurso de esgotamento, quase sinalizando uma radicalidade?
Eu mesma já passei por isso, a experiência de rompimento que me deu taquicardia. Claro, quando era muito jovem, naquela fase em que a gente é intenso, em que as coisas parecem definitivas. Também fiquei doente. Curiosamente, fiz endoscopia com o médico que aparece no filme (risos). Acho que esse trajeto da Silvia tem a ver com aprender a vivenciar o mundo a dois e de repente virar novamente um. Isso gera um abismo enorme. A protagonista era apática, nem sabia o que a interessava. De supetão, vive uma explosão, para depois cair num abismo. Pessoas próximas a mim viveram isso do luto, especificamente, então a inspiração vem também desse lugar. Durante a rodagem do filme, perdi meus avós. Porém, ao longo do processo de escrita as minhas perdas tinham sido de outras naturezas.
Existe no filme uma coligação entre medo e sensualidade, especialmente no começo. De onde surge essa fusão como elementar para você?
Para mim isso faz muito sentido. O medo e desejo caminham lado a lado, sobretudo quando você é adolescente, com as coisas mais misteriosas, com aquele frisson. O medo e o desejo antecipam o que está por vir. No fim das contas, o cinema de horror é sobre isso. Gosto muito de um tipo de cinema mais sensorial, não tão racional, que te permite mergulhar em algumas sensações. Por isso foi tão importante começar com um longa assim.
O filme teve sua première no Festival de Cannes e agora está chegando ao circuito comercial em meio a uma pandemia. Como você enxerga esse percurso atravessado por uma situação atípica?
Jamais imaginei que seria assim. O mundo vem apresentando reviravoltas cada vez mais surpreendentes, infelizmente para o lado ruim. Nunca pensei que as cosias chegariam aonde chegaram. O filme estreia num mundo terrível, com pandemia e queimadas. É meio louco. Por outro lado, assim ele acaba dialogando com a aura de pesadelo que estamos vivendo atualmente. Depois do cinema, vamos para a Netflix, em data ainda a ser confirmada. Queria muito acessar o público jovem, que infelizmente não está mais indo ao cinema. Tentamos durante os festivais levar grupos deles às sessões, mas não foi fácil. Embora o filme tenha uma linguagem mais desafiadora, quero entender como os jovens se relacionam com ele. Nesse sentido, o acordo com a Netflix me deixou muito contente.
Você é uma jovem realizadora, diante da qual a gente tem o costume de dizer “com uma carreira enorme pela frente”. Mas como pensar o futuro como cineasta diante do atual panorama de descaso do poder federal com a Cultura?
É uma pergunta muito boa. Se pensarmos na questão pratica, nas possibilidades de financiamento, dá vontade de sentar e chorar. Do ponto de vista criativo, o que estamos vivendo acaba nos estimulando a tentar discutir tudo isso. Me ajuda um pouco o pensar histórias, personagens e situações. Essa pausa por causa da pandemia acabou me propiciando, apesar de toda a tragédia coletiva, um momento de reflexão sobre origens e aquilo que é importante de fato. Estou tentando trazer isso para o que ando escrevendo. Temos de reforçar nossos laços de afeto. Aliás, como é importante no meio de tudo isso fortalecer nossos grupos e relações de amor e pensar em levar isso para as telas.
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