Matteo Garrone é um dos maiores nomes do cinema italiano atual. Vencedor de 8 David di Donatello (o “Oscar” da Itália), teve seus filmes exibidos – e premiados – nos principais festivais de cinema de todo o mundo (Cannes, Veneza, Berlim) e indicado a premiações importantes, como o Spirit (EUA) e o Bafta (Inglaterra). Até ao Prêmio Guarani, promovido pelo Papo de Cinema e que conta com as participações de dezenas de críticos de todo o país, ele já concorreu, por Gomorra (2008), como Melhor Filme Estrangeiro. Agora, no entanto, decidiu oferecer a sua própria visão a uma das fábulas mais conhecidas de todo o mundo: Pinóquio (2019)! Após ter sido exibido na Berlinale, no início do ano passado, o filme teve seus lançamentos internacionais adiados, devido à pandemia do COVID-19. Agora, no entanto, com os cinemas mais uma vez abertos, está conseguindo leva-lo a outros países, inclusive ao Brasil, onde o longa estreia nessa quinta, 21 de janeiro. Aproveitando a oportunidade, entramos em contato com o diretor por telefone e tivemos uma conversa direta sobre suas inspirações, seu trabalho com os efeitos especiais e a relação que desenvolveu com Roberto Benigni, que aparece no papel de Gepetto! Confira!
O que há de tão fascinante nos contos de fada, e o que o motiva a adaptá-los ao cinema contemporâneo?
Tenho uma relação muito próxima com os contos de fada, isso é fato. Desde pequeno, sempre gostei de lê-los, era algo que me envolvia e me levava a uma outra dimensão. Em parte, acredito, é o que procuro ao adaptá-los para o cinema, oferecer essa porta de escape a um mundo mágico de fantasia. Mas, ao mesmo tempo, sei que essas são histórias que falam de nós, seres humanos, em uma conexão bastante estreita. Claro, há todas aquelas criaturas fantásticas, mas são apenas disfarces. No final, a história é sobre nós mesmos. Ou seja, os conflitos que vivenciam, os problemas que enfrentam e as dificuldades com as quais precisam lidar são facilmente identificáveis. Como prefiro fazer do meu cinema um meio de oferecer a minha interpretação da realidade ao meu redor, os contos são apenas uma outra forma de oferecer essa minha visão.
O que há de diferente na sua versão de Pinóquio, ainda mais dentre tantas outras já feitas?
Bom, pra começo de conversa, esse é o Pinóquio do Matteo Garrone (risos). Então, é um filme feito a partir do meu ponto de vista, que não é igual ao olhar do Roberto Benigni (que fez a uma versão em 2002) e muito menos do Walt Disney, por exemplo. Mas, claro, todos nós nos baseamos no livro de Carlo Collodi, que é universal. O que procurei fazer, no entanto, foi ser o mais fiel possível à obra original. Pra começo de conversa, acho que é a primeira vez em que o Pinóquio é, de fato, interpretado por uma criança, e também não é uma animação. Foi fundamental, para isso, o nível de excelência alcançado pelos efeitos visuais, que possibilitaram essa visão super realista sobre esse boneco de madeira que ganha vida. O ator está ali, mas os efeitos também. É uma composição dos dois. Penso que ao combinar esses elementos, conseguimos criar algo realmente surpreendente, que a audiência nunca viu antes. Outro fator importante é que o livro do Collodi é todo ilustrado, e esses desenhos foram o meu guia ao compor o visual do filme. Assim, penso que conseguimos oferecer a nossa visão, mesmo sendo fiel ao romance clássico.
Geralmente, quando se fala de Pinóquio, há muito a respeito do nariz que cresce ao contar mentiras e a vontade dele em se tornar um garoto de verdade. No entanto, esse não parece ser prioridade para você. Como foi o processo de adaptação do livro em cinema?
Foi uma responsabilidade imensa, confesso. Afinal, esta era a oportunidade de trabalhar com uma das mais importantes obras da literatura italiana – e mundial! Uma verdade obra prima! Então, qualquer alteração que fosse feita, precisava ser muito bem estudada, pois não poderia ser gratuita – era necessário justificar cada novo gesto ou intenção. Como disse antes, o livro é repleto de imagens, belíssimas, e tentei seguir o caminho de recriar essas ilustrações. Afinal, ele já era, por si só, muito rico. A partir do momento que houve essa definição, o projeto me deu muitas oportunidades de aprendizado como diretor. Tentamos fazer a história mais próxima possível do original, tornando-a viva. Queria um filme que alcançasse as crianças, que conseguisse se comunicar com elas, mas, que ao mesmo tempo, conseguisse estabelecer conexões também com os pais. É um convite aos adultos para que, ao menos durante essas duas horas, voltem à infância. Ou seja, é para toda a família. Um entretenimento, com momentos engraçados, mas outros também tristes.
O garoto de madeira é muito realista. Como foi encontrar esse equilíbrio, através dos efeitos especiais, entre a realidade e a fantasia?
Esse era um dos aspectos mais cruciais de todo o projeto. Na história de Pinóquio, tal qual a encontramos no livro, todas as criaturas com as quais ele se depara não são simples animais, pois todas conseguem falar com ele. Ou seja, são arquétipos da cultura italiana da época, mas também universais, fáceis de serem identificadas. Para mim, quando se toma a decisão de fazer um filme realista com animais, acho muito estranho vê-los falando como se fosse gente. Causa um desconforto visual muito forte. Por isso, decidi criar personagens que poderiam ser antropomórficos, ou seja, um pouco animais, mas também humanos. Essa foi a primeira diretriz que assumimos. Trabalhamos muito com prostéticos, com os atores, para não exagerar no que seria feito depois, na pós produção. Queria uma combinação delicada entre o real e o imaginário. Foi uma oportunidade incrível de desenvolver esse trabalho. Sabe, gosto muito de ver no set as criaturas elaboradas, com toda a riqueza de detalhes. Isso oferece uma nova energia ao conjunto.
Roberto Benigni tem uma relação óbvia com Pinóquio – afinal, ele também já contou essa história no cinema. Por quê você pensou nele para viver Gepetto?
Ele é o Gepetto ideal para mim. Pensei nele desde o começo, mas tinha dúvidas se aceitaria participar de uma nova versão dessa história. Ele possui muitas conexões com a trama original. Assim como os personagens de Collodi, também veio de uma família pobre, formada por fazendeiros, na Toscana. Ou seja, conhece bem aqueles cenários pelos quais a trama se passa. Sem falar que é um ator incrível, muito engraçado, mas ao mesmo tempo de grande potencial dramático, capaz de fazer você rir e chorar em questão de minutos. Quando ele nos disse “sim”, quase não acreditei. Foi muito emocionante contar com ele no set. Um verdadeiro presente. Sabia que a experiência de trabalhar com ele iria me ensinar muito, e de fato, foi sempre muito generoso conosco, humilde e atento a tudo que estávamos fazendo. Foi um imenso prazer estar ao lado dele nessa jornada.
Durante as filmagens, qual foi o envolvimento dele? Benigni chegou a participar do processo criativo, ou se manteve apenas como ator?
Ele participou do processo criativo, com certeza. Pensamos no Roberto Benigni para o papel de Gepetto desde o começo, quando ainda estávamos escrevendo o roteiro. Então, ele foi um dos primeiros nomes do elenco que contatamos, e tivemos muitas oportunidades de conversar com ele a respeito do que queríamos fazer com essa história e com os personagens. Houve muita troca entre todos nós. Outra coisa que foi também muito importante foi que ensaiamos muito, com todos os atores, alternando momentos de descontração com outros de bastante relaxamento. Assim, a sintonia entre todos foi fortalecida. O tempo todo Benigni esteve presente, sempre dando conselhos, oferecendo opiniões. Aprendi muito com ele, e tenho certeza que desenvolvemos uma ótima amizade durante todo esse processo.
Pinóquio é um filme melancólico, sombrio. O quanto ele é também um reflexo do século XXI?
Acho que a violência que está ao redor de Pinóquio é necessária para mostrar às crianças as consequências dos seus atos e o quão perigoso pode ser tomar as decisões erradas. Em nenhum momento tivemos a intenção de assustar ou de criar soluções gratuitas para os problemas narrativos à medida em que eles iam se apresentando. Muito pelo contrário. Portanto, o que fizemos foi abraçar essas decisões, que já faziam parte da trama original, e oferecer um contexto contemporâneo a elas. Nós vivemos num mundo perigoso, e isso é válido tanto para hoje como para séculos atrás. E as crianças precisam aprender, essa é uma lição que segue moderna e atual. É um filme que fala muito de nós, dos nossos desejos, da nossa luta pela vida, e como precisamos ser fortes diante às tentações. Mas também há espaço para a redenção, e no fundo de tudo isso, há esse amor transformador de pai para filho.
Pinóquio foi exibido na Berlinale, no início de 2020, e estava pronto para conquistar o mundo. Como foi a trajetória do filme diante da pandemia e das dificuldades surgidas durante o ano?
Felizmente, o filme foi um grande sucesso na Itália no Natal de 2019, então isso nos tranquilizou. Já havia sido exibido em casa, portanto, e todo mundo por aqui teve a oportunidade de vê-lo como ele merece, na tela grande. Claro que ninguém esperava pelo que aconteceu no ano passado, e você sabe, aqui a tragédia do coronavírus foi muito grande. Então, não era o momento e ninguém tinha cabeça pra pensar no filme no meio daquela situação. Foi deixá-lo de lado por um tempo, descansando. Acredito, portanto, que agora é uma boa ocasião para redescobri-lo. Aos poucos está sendo distribuído, e as pessoas estão podendo vê-lo com cuidado e segurança na maneira como ele foi pensado, isso é, na tela grande. Esse é um filme grandioso, com muito investimento no visual, e por isso, quanto maior for a tela, melhor. Isso não quer dizer, no entanto, que se você decidir assisti-lo em casa, na televisão, ou mesmo no seu computador, não irá conseguir aproveitar. Com certeza, porque ele também é muito divertido. Mas, se me perguntarem, sempre irei dizer para irem aos cinemas.
Você conhece o Brasil? Como imagina que o público brasileiro irá reagir diante do seu Pinóquio?
Nunca estive no Brasil, infelizmente. Tenho comigo que, o dia que pisar aí, vou me apaixonar de tal maneira que nunca mais irei voltar para a Itália (risos). Então, como ainda tenho muito o que fazer por aqui, vou me reservando esse momento para o futuro. Mas com certeza está nos meus planos, todos os meus amigos que já visitaram o seu país me falaram maravilhas a respeito. O Vincent Cassel, com quem filmei O Conto dos Contos (2015), é completamente louco pelo Brasil, tanto que está morando aí agora. Ele vivia me dizendo: “você tem que conhecer, é o melhor lugar do mundo”. Então, tá na minha lista, e sei que é uma viagem que ainda tenho que fazer. Agora, sobre o Pinóquio, que está chegando ao Brasil antes de mim, torço pelas melhores reações possíveis. Estou bastante confiante, pois há muitos italianos no Brasil, e brasileiros por aqui também. Somos povos muito parecidos, e se o filme funcionou muito bem aqui, tenho certeza de que também irá encontrar um bom público por aí.
(Entrevista feita por telefone em janeiro de 2021, com a preciosa colaboração de Bruno Carmelo)
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