Crítica

Um dos filmes mais polêmicos, conturbados e elogiados feitos na Itália neste início de século, Gomorra é uma bela amostra de um novo caminho para o cinema contemporâneo do país, que deixa de lado as comédias românticas e as crônicas familiares e de costumes para centrar seu foco em problemas muito mais urgentes e necessários. E o que temos aqui não é um longa para todos os públicos, mas sim indicado somente para àqueles que não temem a verdade e suas conseqüências, por mais duras e sofridas que elas sejam. E esta posição deve se refletir nos dois lados da tela.

Baseado no livro-reportagem homônimo de Roberto Saviano, Gomorra tem como mote as atividades da organização criminosa que mais assassinou pessoas nos últimos trinta anos em todo o mundo, a Camorra. E a máfia vista aqui é completamente diferente daquela eternizada pela sétima arte no clássico O Poderoso Chefão (1972), por exemplo. Aqui a morte é crua e sem sentimento, num lugar onde não há espaço para a honra, lealdade ou esperança. O mais interessante, no entanto, é o ponto de vista adotado no discurso: não acompanhamos os mandantes, aqueles que controlam os destinos dos demais. Não, muito pelo contrário. Ficamos, sim, ao lado da outra extremidade, dos mais fracos, dos tolos e ingênuos que são levados pelas circunstâncias a considerar inimigos mortais aqueles que nasceram na casa vizinha e que até um dia antes dividiam sonhos e refeições. Vemos os pobres, os desencaminhados, os que não tem para onde ir nem como seguir respirando. O único caminho para eles é a luta, é a violência, é o próprio fim.

Gomorra incomodou muita gente. Saviano, por exemplo, após a publicação do livro foi condenado à morte pelos mafiosos que denunciou, e hoje em dia vive sob proteção policial. Por outro lado, colocou em evidência uma realidade há muito relegada ao hemisfério sul, aos países de terceiro mundo, como se o progresso atingisse a todos na Europa, por exemplo, de forma uniforme e unânime. A Itália é um país de contradições, que guarda um passado incrível, ao mesmo tempo em que aparenta não ter um futuro seguro. E o diretor Matteo Garrone, que estava há quatro anos sem filmar, retorna com um vigor surpreendente, compondo um painel preciso e equilibrado do quão triste e aterrorizante é a situação enfrentada naquela região hoje em dia.

É difícil se deixar envolver por Gomorra. O roteiro, escrito em conjunto por seis profissionais distintos, desde Garrone e Saviano, até veteranos como Ugo Chiti (Manual do Amor, 2005) ou novatos como Maurizio Braucci, se utiliza de cinco personagens distintos para compor uma visão ampla do quão abrangente pode ser a influência das atividades criminosas no sul da Itália. Ou seja, é tudo muito fragmentado, disperso, sem uma linha única a ser seguida. Há o alfaiate explorado que não deve ceder aos interesses estrangeiros, os dois garotos sem perspectivas que se imaginam ‘donos do pedaço’, o menino indeciso entre o marasmo de uma vida correta e o dinamismo do perigo e da delinqüência, o negociador que ganha a vida escondendo grandes quantidades de lixo tóxico e o velho ‘don’ que precisa se acostumar às novas regras à força. São, na verdade, cinco tipos genéricos, que servem mais para dar cor a um grito que é muito mais urgente. O que está sendo dito é que o estrago é feito todos os dias, e que agora não há mais como evitar – talvez, no máximo, tentar consertá-lo.

Indicado ao Globo de Ouro e representante italiano na corrida ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, Gomorra foi o grande vencedor do European Film Awards (batendo outros favoritos, como o francês Entre Os Muros da Escola2008, o inglês Simplesmente Feliz, 2008, o espanhol O Orfanato, 2007, e o israelense Valsa com Bashir2008), tendo sido premiado como Melhor Filme, Direção, Ator (Toni Servillo), Fotografia e Roteiro. Ganhou ainda o Festival de Munique, o Grande Prêmio do Júri em Cannes e Melhor Roteiro no Festival de Chicago, além de ter sido indicado a Melhor Filme Estrangeiro também no Independent Spirit Award, ao British Independent Film Award e ao Satellite. Ou seja, reconhecimento crítico é o que não lhe falta. Felizmente, teve também um ótimo impacto junto ao público, ao menos no seu país de origem, onde arrecadou quase US$ 30 milhões. Ou seja, resta apenas que o resto do mundo acorde para esta contundente denúncia. Com certeza ela merece ser ouvida com atenção.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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