Matheus Nachtergaele é um dos confirmados do Papo de Cinema. Conversamos em diversas ocasiões ao longo dos anos: nas estreias de Trinta (2014) e Zama (2017), na homenagem do Festival de Vitória em 2015 e em uma live no nosso instagram em 2020. Agora, que está com trabalho novo chegando aos cinemas, não seria diferente. Afinal, é um dos protagonistas do premiado Piedade, de Claudio Assis. Nele, aparece ao lado de nomes poderosos, como Fernanda Montenegro, Irandhir Santos, Cauã Reymond e Gabriel Leone! E o melhor: é o vilão da história, que quer acabar com uns e seduzir outros. Na conversa a seguir, falamos sobre esse personagem complexo, tão presente no Brasil de hoje, e ainda abordamos a parceria constante com o diretor – afinal, esse é o quinto filme dos dois juntos! Confira!
Matheus, você comentou em mais de uma ocasião que o Aurélio foi um personagem que te surpreendeu. Qual a primeira coisa que você pensou quando recebeu esse convite?
Fiquei muito feliz por, mais uma vez, dentro do cinema do Cláudio Assis, ser colocado num desafio. Sempre foi assim, em todos os nossos filmes, desde Amarelo Manga (2002). Lembro no set desse estar chorando e dizendo pra ele: “acho que não sei fazer o Dunga”. Porque tinha achado que era fácil, a bichinha quáquá, do hotel fuleiro, que era só ter um trejeito engraçado que daria conta. Não tinha dimensionado a jornada, a tristeza e a solidão. Só quando chegamos ao set que me dei conta. Nesse momento, olhou pra mim, também emocionado, e disse: “não se preocupa, porque também não sei dirigir”. Era um filme difícil, mesmo. Então, estamos descobrindo coisas juntos, ao longo desses anos todos, desses filmes todos. Acho que faz questão de me colocar em personagens que me provoquem, que não me façam repetir o meu trabalho como ator. Me deixando vivo enquanto artista.
Ele gosta de tirar você de uma zona de conforto.
Exatamente. Não só pra me dar trabalho, mas pra me estimular. Pra que a gente pense juntos. Descubra novos caminhos. Fiz personagens diferentes em cada um desses filmes. No Big Jato (2016), o anterior antes de Piedade, fiz irmãos gêmeos, veja só! A nossa colaboração, essa co-criação, é intensa. Quando o Hilton Lacerda e a Anna Francisco, os roteiristas, e o Claudio Assis, juntos chegaram mais próximos ao roteiro final de Piedade, tinha esse cara que vinha de São Paulo. O Aurélio é o representante da maior parte da classe média brasileira. Ele é o sonho de consumo de muitos. É o cara que venceu as últimas eleições. É o ultra-capitalismo, é a direita. É a aposta total no negócio. Vê sua vida como um negócio, e não como um afeto. O Claudio, por me conhecer bem, sabe que sou de São Paulo, que venho de uma família de classe média alta e conheço, portanto, muitos Aurélios. Que poderia ter sido um Aurélio se essa arte em mim não tivesse me levado para outros cantos.
Para criar o Aurélio você precisou ir atrás dessas referências?
Naturalmente tive que fazer isso. Ele se parece com muitas pessoas com as quais convivi minha vida toda. Em São Paulo vivem muitos Aurélios. Hoje em dia, os Aurélios venceram. Estamos num Brasil governado por Aurélios. Isso não é uma crítica negativa, necessariamente. É uma constatação. Agora, é claro que do ponto de vista de nós, artistas brasileiros, ou ao menos de mim e do Cláudio, gostaríamos que o rumo do Brasil fosse mais humanista, mais ecológico, mais igualitário, mais mulato. E menos branco, cosmopolita, neopentecostal e ultradireitista. Mas, na verdade, o tipo brasileiro mais recorrente, ou mais vitorioso nesse momento, é o tipo do Aurélio. O terno de grife, a assepsia nas relações, a produtividade, a sexualidade de armário. Causar o mínimo de transtorno possível pra sua família, então faça tudo escondido. Não seja nunca quem você é de verdade. Pareça bem-sucedido. E ganhe seu dinheiro. Cumpra o seu objetivo para com o capital que lhe contratou.
Falando do ator Matheus Nachtergaele, o que você acha que acrescenta ao cinema do Claudio Assis para ele te buscar tantas vezes?
Talvez a minha vertigem de ator. Ele gosta de atores que tem vertigem, como o Irandhir Santos, a Dira Paes, como eu. Talvez goste de utilizar, da maneira mais bonita possível, o meu carisma popular. Sou um ator que fiz tipos muito populares, amados por tantas pessoas, que às vezes vão ao cinema para encontrar esse ator pelo qual elas tem carinho, e se deparam com uma obra mais provocativa, como o cinema do Cláudio. Talvez se interesse em chamar essas pessoas através da minha presença. Mas, principalmente, somos amigos. Cada filme foi uma oportunidade para ficarmos juntos. De criar um espaço concreto para passarmos meses na companhia um do outro. Brigando, fazendo as pazes. Convivendo no tempo e no espaço. Como precisam os amigos. Tem vários motivos, mas acho que esses três são os que apontaria de imediato.
Piedade, portanto, é mais um passo nessa caminhada conjunta de vocês.
Muito mais do que o resultado do filme – e olhe, o Piedade está me surpreendendo com a quantidade de questões bonitas que levanta pros espectadores. É mais provocativo do que pensei que fosse, esse tempo que levou para ficar pronto o deixou ainda mais atual. Também se verticalizou, ficou mais profundo do que pensava que poderia ser. Agora, o que me importa, tem sido a vivência com o Claudio como artista e as pessoas que reúne durante a feitura dos filmes. A aventura de filmar tem sido tão ou mais importante do que o filme como um todo, quando pronto. As coisas que discutimos, os debates, o amor que desenvolvemos uns pelos outros, o preparo de cada cena, as pessoas novas que chegam na trupe. Como o Cauã Reymond, nesse caso. Pessoas tão diferentes daquelas com as quais trabalhamos tanto tempo atrás. Esse menino, o Gabriel Leone, como é talentoso! E a Fernandona, né?
Você e o Cauã formam uma dupla forte. No entanto, há uma cena entre você é o Gabriel que é muito profunda.
De fato, é muito interessante. Aliás, é uma das cenas do Aurélio que mais gosto. Nela, as segundas intenções estão em primeiro lugar. Não havia texto para isso, para nenhum dos dois. Mas é o que está sendo dito o tempo todo. Apesar de qualquer outra coisa que aconteça entre eles. É engraçado isso. É toda no subtexto. Com o Cauã a coisa é mais direta. Eles se paqueram abertamente. Um é o tubarão predador, o Aurélio, e o outro é esse órfão, perdido, que está se entregando. Nem tem consciência da sua fragilidade. Mas está olhando esse cara bem-sucedido, mais velho. “Nossa, vou me entregar um pouco aqui”. A esse pai-capital, tão organizado.
Voltando à presença da Fernanda Montenegro. É verdade que você foi responsável por ela estar no filme?
Eu só fiz o link. O que fiz foi não mais do que dizer para o Cláudio: “tenho certeza que ela admira o seu trabalho”. Ele é que não tinha segurança para convidá-la. Tem o jeito dele, suas próprias inseguranças. E a Fernanda é um monstro, né? Tá lá em cima, todos a olham com reverência. Teve um momento que ele havia pensado na Carmen Maura, olha que loucura. Trabalhei com ela num filme venezuelano, chamado La Virgen Negra (2008). Pouquíssima gente viu esse longa. Meu personagem era até grande, e ela era uma das protagonistas. Haviam três atores convidados: Angélica Aragón, do México, Carmen Maura, da Espanha, e Matheus Nachtergaele, do Brasil.
Piedade fala de questões caras a ti enquanto indivíduo?
Muito. Os filhos perdidos é uma temática forte. Afinal, sou filho de um suicida. Essas tragicomédias familiares me são caras. Apesar de, nesse filme, sou o personagem provocador da cizânia. Penso que está demorando pra gente entender que um país não é um negócio. É um lar. Piedade é sobre isso. Somos uma colônia de exploração, e é difícil se libertar disso. Ainda tenho fé que a gente consiga ser o país que vai ensinar ao mundo essa verdade. Temos tamanho e riquezas naturais para isso. Temos miscigenação sanguínea, cultural, religiosa, musical, afetiva suficiente para poder ser a escola disso para a humanidade. Mas ficamos negando essa condição. Estamos dando ré nessa vocação, que é a mais bonita que temos. Posso jurar que foi o que entendi como homem, nesses meus mais de 50 anos de vida, nessas minhas andanças pelo Brasil.
Esse afeto está presente no filme. Imagino que no set também, certo?
Com certeza. Os sets do Cláudio Assis são extremamente carinhosos. O trabalho dele, na direção, sempre foi de contaminação. Mas nunca de um jeito formal, careta. Nunca teve ensaios, leituras. Eram grandes discussões, em mesas de bar, conversas loucas e longas sobre tudo, convívio intenso entre as pessoas e ensaio apenas na hora de filmar. Antes de decidir o que fazer, no dia da filmagem, todo mundo descobrindo junto, como uma trupe. Mas esse filme é mais falado que os outros. Tem mais diálogos. Coincidentemente, a Fernanda Montenegro estava com a gente. E ela é uma pessoa que adora mesas de leitura. Assim, estabeleceu-se, pela primeira vez no cinema do Claudio, esse formato. Deu uma dinâmica diferente, juntou as pessoas de um outro jeito. E foi uma maneira, também, do Claudio receber a Fernanda. Também havia espaço para trabalharmos da maneira como a senhora quiser. Mas a mesa de bar, o nosso jeitão, continua em paralelo. Foi um jeito dela estar no processo de uma maneira ativa. A Fernanda gosta de ler? Vamos ler.
Você estreou no cinema ao lado da Fernanda Montenegro.
O primeiro trabalho de verdade com a Fernanda Montenegro foi o Central do Brasil (1998). Mas, antes disso, havíamos trabalhado juntos em O Que é Isso, Companheiro? (1997), só que nesse ela tem apenas uma cena, na janela, e eu estou passando na rua. Estava esperando para sequestrar o embaixador, com a Nanda Torres, e ela na janela, vendo tudo, nos denunciando no telefone numa ligação para o Lulu Santos (risos). Nos vimos, apenas. Já no Central, entro no filme só no final, mas são cenas fortes. Teve aquela leitura da carta, muito emocionante. Filmamos alguns dias juntos, pelo menos uns três. Logo na sequência, antes do Auto da Compadecida (2000), fizemos A Gaivota no teatro. Ela era Arkádina e eu o Trepliov, o filho dela. Dirigidos pela Daniela Thomas. Ou seja, além desses filmes todos e séries de televisão, estivemos juntos também nos palcos.
No Piedade vocês tem basicamente uma cena juntos, mas é um momento bastante tenso.
Uma cena difícil. Muito longa, um plano-sequência enorme, sem cortes. E com aquele menino no meio. É durante essa conversa que ele planta o veneno na Dona Carminha da história do filho perdido. Na minha opinião, é o momento que acaba causando a morte dela. Ele é o anjo exterminador. O que preciso fazer para que assinem essa escritura e entreguem a terra? Tem que remexer nessa tragédia familiar? Vambora!
Outra parceria importante que você estabelece em cena é com o Cauã Reymond. Como foi construir esse relacionamento?
Se não for na superbrodagem, a coisa não funciona. Não foi mais difícil do que as outras cenas. Mas é mais delicado. Por um lado, chega-se ao ponto da intimidade física concreta. A cena pode ser fingida, mas é também vivida. É preciso muito senso de humor e de parceria pra fazer cenas como a que protagonizamos sem maiores traumas. Tenho experiência com isso. Fiz filmes em que isso aconteceu de maneira até mais violenta. Fiz cenas difíceis com a Dira Paes, por exemplo, no Baixio das Bestas (2006). Com o Cazarré e com o Milhem no A Concepção (2005). Já passei por isso. Então, quanto mais amigo, melhor. E, obviamente, é importante estar claro para os atores a importância dessa cena dentro da história. Pra você não ter dúvidas de que seja gratuito. Tem que valer à pena. É difícil discorrer intelectualmente, falar em palavras o porquê da necessidade dessas cenas. O sexo extrapola a nossa razão. Mas o fato é que se encontram, e apesar dos desejos serem diferentes, das intenções entre eles não serem as mesmas, acabam se encontrando na zona do sexo. Nessa região da sexualidade. Que nem sempre é amor. E é sobre isso que o Claudio quer falar. Talvez, na maioria das vezes, seja violência.
Tanto o sexo quanto a violência são recorrentes no cinema de Claudio Assis. A dinâmica que se estabelece entre o Aurélio e o Sandro é repleta dos dois.
Nelson Rodrigues tem uma frase famosa, que sempre me deparo com ela. Diz que no homem, sexo é amor. Isso é muito louco de se pensar, pois é profundo, significa que cada relacionamento sexual seria amor. Mas não é assim que a gente age. Existe um lado animalesco, e um pervertido também. Uma parte de nós faz sexo por pura animalidade, uma por perversão, e apenas uma terceira faz sexo de verdade, faz amor. Tive a sensação de que o Aurélio quase fez amor pela primeira vez na vida. Foi algo que me ocorreu somente ao assistir ao filme. Na segunda transa deles, antes do quiproquó com a mãe no computador. Afinal, ele diz: “não transo duas vezes com uma pessoa só”. E o personagem do Cauã, de forma muito inteligente, pergunta: “por promiscuidade ou por proteção?”. Ele não responde, porque é pelas duas coisas. Tanto que os dois acabam transando uma segunda vez. Provavelmente, poderia se apaixonar. Mas não acontece. Afinal, acontece algo patético – e mais não vou falar, para não dar spoiler – que desmonta aquilo.
O Aurélio é o anjo exterminador, como você o definiu, mas, ao lado da Denise Weinberg, protagoniza uma das cenas mais cômicas do filme.
Você acredita que ela estava no quarto ao lado? Ensaiamos bastante, nós dois. Criamos uma relação. A Denise tem uma presença poderosa. Aparece somente por Skype, poucos minutos, e existe completamente na trama. Foi adorável dividir esses momentos. Apenas seguimos as linhas do roteiro. Uma mãe hiper-protetora, uma relação infantilizada. Não tínhamos certeza que seria tão engraçado esse momento dos dois. Apesar da gente ter rido muito nos bastidores. Nunca filmamos no mesmo set. Ensaiamos juntos, mas depois ela ia para o quarto ao lado, no hotel, só com o Claudio. E eu ficava com o resto da equipe. Estava presente, mas nunca fisicamente. Ela representa a vida afetiva do Aurélio, aquele filho gay de armário. Ele não se mostra pra mãe. Não há intimidade entre eles.
A cena final do Piedade é muito forte. As pessoas se perdem nessa cidade grande. Uma onda gigante está destruindo tudo. Como você vê esse processo?
O meu personagem é o emissário do capital. É o mensageiro. Penso se as pessoas irão se identificar ou não com o Aurélio. Será que irão negar? Que vão entender? Será que vão se ver? Por isso que momentos mais leves, como esse com a mãe, são tão importantes. Pra dar espaço para a pessoa se identificar. Mas, depois, precisa se encontrar criticamente. A verdade é que esse tudo por dinheiro está nos levando à catástrofe. Não sei te responder essa pergunta. O filme me pareceu sugerir mais questões do que entregar respostas. Foi um sentimento claro para mim. Que bom que nessa altura das nossas vidas, e nesse país de agora, a gente está se perguntando como artista, ao invés de estar respondendo com alguma bandeira.
(Entrevista feita ao vivo em Brasília em 24 de novembro de 2019)
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