Crítica


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Sinopse

O jornalista Fernando e seu amigo César abraçam a luta armada contra a ditadura militar no final da década de 1960. Os dois se alistam num grupo guerrilheiro de esquerda. Em uma das ações, César é ferido e capturado pelos militares. Fernando então planeja o sequestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Burke Elbrick, para negociar a liberdade do colega e de outros companheiros presos.

Crítica

Em parte baseado no livro homônimo de Fernando Gabeira (lançado no contexto da anistia política que possibilitou o retorno ao Brasil dos exilados pela ditadura militar), O Que é Isso, Companheiro? é um filho direto da retomada da produção cinematográfica brasileira nos anos 1990. Mas é, sobretudo, um filme com a cara de Bruno Barreto. Filho de um casal de produtores prestigiados (Luiz Carlos e Lucy Barreto), ele foi responsável, no início da carreira, por Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976), um dos maiores sucessos da história do cinema nacional, que alguns anos depois ganhou um remake norte-americano e exportou o nome de seu diretor. Após realizar alguns filmes nos Estados Unidos, com atores e atrizes conhecidos (como Amy Irving, por exemplo, com quem viria a se casar), o cineasta retornou ao Brasil para dirigir essa adaptação do livro de Gabeira, focada em um episódio importante da história recente do país – o sequestro do embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick, no Rio de Janeiro, em setembro de 1969, empreendido por militantes de duas organizações de esquerda no auge do regime militar. Sua versão de O Que é Isso, Companheiro?, no entanto, é estética e politicamente mais afinada com um olhar norte-americano que brasileiro.

Esse aspecto foi destacado pelo jornalista Eugênio Bucci, em meio à polêmica recepção ao filme por parte de ex-guerrilheiros e intelectuais de esquerda, quando do lançamento nos cinemas. Enquanto muitos enxergaram um posicionamento favorável à ditadura na opção do realizador por, ao mesmo tempo, apresentar como vilão o líder militar do sequestro do embaixador e introduzir crises de consciência na figura de um torturador, Bucci localizou, com precisão, o centro narrativo de O Que é Isso, Companheiro? no olhar de Elbrick (interpretado por Alan Arkin). É a voz do embaixador que organiza politicamente o filme, localizando-se entre dois polos que ele vê como equivalentes: a extrema-esquerda e a extrema-direita, ambos compostos tanto por figuras humanas – Paulo (Pedro Cardoso), alter-ego de Gabeira, no primeiro caso, o torturador Henrique (Marco Ricca) no segundo – quanto por monstros – Jonas (Matheus Nachtergaele) no lado guerrilheiro, Brandão (Maurício Gonçalves) entre os torturadores.

Esteticamente, O Que é Isso, Companheiro? se estrutura como um thriller, um filme de ação com pano de fundo político em que a princípio importaria menos debater questões complexas do período da ditadura militar brasileira e mais criar uma narrativa envolvente, tensa, sobretudo em dois momentos chave: a sequência do sequestro e o longo segmento que se passa no cativeiro do embaixador, uma casa no bairro do Rio Comprido, na capital fluminense. E Bruno é bem sucedido em ambos. O passo a passo do sequestro de Elbrick, que inclui a espera angustiante pela chegada da limusine oficial da embaixada, as intervenções mal sucedidas de uma senhora (Fernanda Montenegro), moradora das redondezas, que tenta avisar a polícia de que algo estranho está acontecendo embaixo de sua janela, e a ação em si é exemplar no uso de elementos da linguagem cinematográfica para a construção da tensão: a montagem, que salta com precisão entre os três espaços que delimitam a ação (o ponto de observação privilegiado ocupado pela personagem de Cláudia Abreu, a esquina onde aguardam os demais guerrilheiros, responsáveis pela abordagem ao carro do embaixador, e a janela da moradora que tenta comunicar o ocorrido à polícia); a movimentação de câmera elegante, também precisa, usada para ressaltar a ansiedade dos personagens de Nachtergaele e Fernanda Torres, acompanhando-os ao carro e de volta à esquina a cada vez que acreditam que Elbrick se aproxima; a trilha sonora típica do thriller, que pontua a cena, ajudando a produzir excitação no espectador.

Já toda a parte da narrativa que se passa no cativeiro, na verdade quase metade do filme, é eficiente na condução das relações entre os personagens. Mesmo a vilania de Jonas, que o leva a manipular a situação para atingir Paulo, seu desafeto, funciona como cinema, apesar de ser um ataque inadequado à memória do personagem real, brutalmente assassinato por torturadores pouco tempo depois do sequestro. E há nesse segmento ao menos um momento muito bonito, em que o diretor capta a emoção daqueles jovens guerrilheiros diante do sucesso da ação, ao assistirem a leitura de seu manifesto na televisão. Estão presentes ali sentimentos muito genuínos, mistura de empolgação própria da idade daquelas figuras e certeza de estarem entrando para a história.

Por fim, apesar de muitas das críticas a O Que é Isso, Companheiro? fazerem sentido, vale destacar que mesmo politicamente o filme tem alguns acertos, na comparação com o cinema de ficção sobre a ditadura militar geralmente produzido no Brasil. Por exemplo: ao apresentarem dois personagens, sujeitos comuns, que colaboram com a polícia, Bruno Barreto e o roteirista Leopoldo Serran escapam de uma representação dicotômica, maniqueísta, da ditadura, comum em muitos filmes, que posiciona em extremos opostos o regime e a sociedade brasileira. É interessante que, mesmo que se apresente como um thriller com forte apelo comercial, ainda assim consiga introduzir esse tipo de debate, por vezes rejeitado em obras esteticamente mais arrojadas e engajadas à esquerda. Algo semelhante se deu 15 anos antes, com Pra Frente Brasil (1982), de Roberto Farias, que foi acusado de não tornar suficientemente clara a associação entre práticas de tortura e governos militares, mas teve o mérito de discutir, no interior de sua narrativa e com riqueza de detalhes, o apoio empresarial, portanto civil, a essas práticas, bem como a apatia de uma parcela considerável da população naquele contexto, os ditos “apolíticos”, que seguiram com suas vidas normalmente, mesmo sob uma ditadura. O Que é Isso, Companheiro? e Pra Frente Brasil acabam funcionando, portanto, como belas demonstrações de que é possível produzir debates políticos complexos dentro de gêneros cinematográficos estabelecidos comercialmente, geralmente rejeitados pela intelectualidade mais sisuda como mero entretenimento escapista.

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é um historiador que fez do cinema seu maior prazer, estudando temas ligados à Sétima Arte na graduação, no mestrado e no doutorado. Brinca de escrever sobre filmes na internet desde 2003, mantendo seu atual blog, o Crônicas Cinéfilas, desde 2008. Reza, todos os dias, para seus dois deuses: Billy Wilder e Alfred Hitchcock.
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