Crítica
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Sinopse
Dora trabalha escrevendo cartas para analfabetos na estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro. A escrivã ajuda um menino, após sua mãe ser atropelada, a tentar encontrar o pai que nunca conheceu, no interior do Nordeste.
Crítica
Longe das paisagens paradisíacas do Rio de Janeiro, bem no meio do efervescente movimento de trabalhadores da Central do Brasil, Dora (Fernanda Montenegro) ganha a vida escrevendo cartas para pessoas analfabetas que sentem necessidade de comunicar-se com os seus. Essa mulher do povo, moradora da periferia, é calejada por um passado feito de saudades, como ela própria diz mais adiante. Testemunha de um cotidiano de desigualdades, de agentes da lei exterminando meninos em prol da prevalência da propriedade sobre a vida, a ex-professora se sensibiliza aos trancos e barrancos com o drama do menino Josué (Vinicius de Oliveira), cujo desejo de conhecer o pai esbarra em diversos contratempos. A morte da mãe amplia a orfandade dele. A relutante que não prima pela entrega das missivas aos destinatários, compadecida contra a própria vontade, assume a tutela do moleque desgarrado, encarando as estradas poeirentas de um país profundamente religioso. Central do Brasil, o filme que consolidou a retomada do cinema brasileiro nos anos noventa, simboliza uma busca maior.
Com base no excelente roteiro de João Emanuel Carneiro e Marcos Bernstein, o cineasta Walter Salles constrói um filme de aparência simples, mas absolutamente comovente. Os ecos de neorrealismo italiano, mais especificamente de Ladrões de Bicicletas (1948), passam pela maneira como o cineasta perscruta o âmbito social, realizando uma investigação de certa forma etnográfica, com toques precisos de melodrama. As deambulações de Dora e Josué desvelam um Brasil profundo, empobrecido no agreste e nas metrópoles, cheio de contradições sociais. A miserabilidade gera distorções. O esquema da venda de órgãos, o jovem executado nos trilhos do trem, os migrantes com dificuldade para estabilizar-se, tudo está nas bordas da imagem centralizada nos protagonistas. O trabalho monumental de Fernanda Montenegro cria uma Dora repleta de camadas, ambiguidades, alguém que não barganha com o espectador para obter aprovação. Porém, sua humanidade é latente, bem como a fragilidade residente sob a casca de impenetrabilidade. A dor ensinou-lhe a ser dura.
Um dos grandes achados pontuais de Central do Brasil é o par de cenas em que Fernanda Montenegro e Marília Pêra, intérprete da vizinha Irene, contracenam. Atrizes de escolas completamente diferentes, elas estabelecem uma dinâmica potente. Walter Salles deixa subentendido que as personagens relacionam-se amorosamente. Josué estranha que ambas não tenham maridos e filhos, manifestando sua curiosidade pueril. Elas apenas se entreolham, cúmplices. Esse é um dos sintomas da sensibilidade do cineasta para estudar as pessoas e revelar o seu riquíssimo estofo. Quando cai na estrada, o filme assume a lógica do percurso transformador, mas não num sentido piegas e conveniente. O que se metamorfoseia é o elo da mulher nada maternal, que frequentemente tenta desvencilhar-se da tarefa por pura falta de jeito, com o menino de olhar triste que constantemente apresenta-se bravio e irritadiço, já que essa é a única forma por ele conhecida de enfrentar o mundo hostil no qual é inadvertidamente arremessado. O cineasta aposta brilhantemente na emoção. Sem vergonha.
Central do Brasil apresenta a força do desempenho do então pequeno Vinícius de Oliveira, num papel difícil. Diferentemente do filho do protagonista de Ladrões de Bicicletas, um símbolo da inocência sendo enfraquecido pela sociedade italiana do pós-guerra, Josué nasceu num berço que não lhe permite ser infantil. Sem pai, agora, nem mãe, resiste em aceitar o afeto de Dora, provavelmente, num nível inconsciente, por medo de perder outra fonte carinho. Sua melhor defesa, então, é o ataque, algo gradativamente atenuado pelo vínculo gerado no convívio diário. A solidariedade une esses dois órfãos à procura de identidade. A religiosidade atravessa o longa integralmente. O povo brasileiro olha para cima entregando a um pai invisível as rédeas de sua existência. Os irmãos com nomes bíblicos, as ladainhas no sertão nordestino, o bom samaritano que foge por medo da tentação, são indícios da visão que Walter Salles imprime do nosso povo sofrido, mas cheio de fé. A trilha sonora, as interpretações, o cuidado com os detalhes, os âmbitos populares e íntimos formam algo brilhante, um filme emocionante e que dignifica a nossa cinematografia. Um real primor.
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Excelente dramaturgia! Uma ferramenta didática poderosa a ser utilizada em sala de aula.