Manhã ensolarada no Rio de Janeiro. Nós, como sempre, estávamos na correria do Festival do Rio, um dos maiores eventos cinematográficos da América Latina. Sessões para lá, entrevistas para cá. O cenário ao fundo era o mar do bairro de São Conrado, que refletia o céu sem nuvens da capital fluminense. Iríamos conversar com a cineasta argentina Lucrécia Martel e o ator Matheus Nachtergaele, um dos principais de Zama, filme cercado de expectativas. Antes dele, o último de Lucrécia havia sido A Mulher Sem Cabeça (2008). Nove anos de um hiato bastante sentido. Matheus nos encontrou antes, dizendo-se ansioso, inclusive porque ainda não tinha assistido ao fruto de seu trabalho. Lucrécia, simpática e sem cerimônias, chegou logo depois, perguntando se podíamos botar as cadeiras no pátio do hotel para a entrevista, haja vista que ela gostaria de fumar ao longo do papo. Um charuto, diga-se. Durante quase meia hora conversamos com eles sobre a parceria, as experiências de cada um nesse esforço árduo, bem como acerca das transformações do mundo. O resultado você confere agora, em mais este Papo de Cinema exclusivo.

 

Zama apresenta um mergulho radical na dimensão atmosférica, em detrimento da trama propriamente dita. Pode-se dizer que é uma mudança na sua abordagem?
Lucrécia Martel:
Veja, não tenho como saber exatamente como é o meu estilo. Para mim, isso é muito difícil de dizer. Nesse filme, especificamente, tínhamos um grande impulso, que era o livro. Já nele estava presente isso do pensamento não se produzir através de uma trama, mas da mescla de coisas que acontecem. Então, é inevitável essa transferência para o filme. Também é óbvio que eu gostaria do livro, justamente porque não sou uma pessoa em busca da trama, mas de reflexões que ocorrem a partir de outras estruturas. Foi um processo natural, não algo que fiz deliberadamente para mudar.

O espaço é muito importante em Zama. Até que ponto ele modificou e/ou condicionou o seu olhar?
LM: Nunca penso a natureza como algo diferente do urbano. Por exemplo, o formigueiro é tão natural quanto a formiga. A civilização das formigas forma o formigueiro. O que construímos, como espécie rara, está na natureza. Para mim, não é diferente filmar o interior e o exterior. Sinto estar em terrenos não tão diferentes. Não necessito que o espaço seja utilizado para situar. Na ordem narrativa, primeiro vêm os diálogos, pois eles criam os personagens; depois, os personagens constroem o espaço; e, por fim, obviamente o espaço contém o todo. Então, essa é a ordem nos meus filmes. O espaço sempre emana dos personagens. Já o som é a voz desse espaço, digamos, fragmentado pelo enquadramento. O som é o que te permite a dimensão extrema desse universo que não podemos ver totalmente. Esse é o critério que utilizei em outros trabalhos, também. Seguramente houve uma mudança, porque no meu último filme eu tinha mais de 40 e agora tenho mais de 50 anos. Se eu não tivesse mudado seria espantoso (risos).

 

Matheus, como foi acompanhar o trabalho da Lucrecia, como ator e diretor?
Matheus Nachteargaele: Essa pergunta é muito boa. Vindo para cá, refleti que tive dois tipos de aproximação em Zama. Como ator, você sempre vai ser “pervertido” (aspas do ator) por uma ideia, de alguma maneira, alheia à sua realidade. Esse apaixonamento (sic) pelo diretor é muito importante. Existe um mundo a ser dito, dentro do qual trabalhamos. Isso não significa isentar-se de dar o seu depoimento. Mas, a gente se utiliza daquele terreno para plantar a nossa flor. Por isso, uma das partes mais complexas e ocultas da labuta do ator é escolher para onde ir. Admiro muito mais alguém rígido quanto às suas escolhas, do que outro muito bom em qualquer coisa. Gosto de observar as opções dos atores. Quando a Vânia Catani, da Bananeira Filmes, fez o link entre eu e a Lucrecia, e a coisa foi se engatando, o meu corpo de ator se interessou por se entregar a essa pervertida, especificamente (risos). Ao mesmo tempo, como sou diretor, de apenas de um filme, mas ainda assim um diretor, bissexto, queria observar como a Lucrecia trabalha. E o que vi foi uma pessoa realmente muito ciente de todas as camadas que envolvem o trabalho de direção. Tudo nesse filme tem a mão dela. É um trabalho obcecado, não é tranquilo, não achei uma experiência calma. 

Por quê?
MN:
Por ser intelectualmente muito ativa. Lembro que, às vezes, parávamos para arrumar a respiração do meu personagem. Me lembro disso. Algo que poderia atrapalhar o ator, mas é preciso embarcar nisso entendendo que até uma respiração diz respeito à sinfonia toda. Você é um instrumento importante da sinfonia. Como ator, me senti mais livre. Como diretor pensante, fiquei instigado e atento às escolhas. Trabalhei muito mais como diretor em Zama que como ator. Não quero tomar um espaço que não me pertence, mas sou conhecido, acho até que de maneira superficial, como um ator de construção de personagens. Mas, na verdade, tudo o que faço é para poder ser eu mesmo. Claro, dentro daquela narrativa. Preciso, sabe? Depois de tudo dito, pensado, escolhida a caracterização, firmado o sotaque, feitas as leituras, as observações da direção, depois de tudo isso, preciso ser eu. A única diferença entre a atuação e a vida, e ela nem é tão grande assim, é que você pode pensar muito durante a atuação, não está entregue burramente enquanto atua. Está pensando. Em Zama, fiquei numa condição incômoda, num ambiente hostil, fora do formigueiro dos homens, onde não há condição confortável à formiga que somos. Fiquei pelado na maior parte do tempo, o que hoje, aos 50 anos, já me incomoda, todo raspado e tingido. Eu estava incômodo.

 

E que história é essa de observar as galinhas?
MN:
No primeiro papo, a Lucrecia me orientou a observar os animais, mais especificamente as galinhas. Achei engraçado e bonito. Ela disse para prestar atenção ao olhar das galinhas. Me pareceu que ela queria dizer que as galinhas soam domesticadas, mesmo na granja, mas permanecem com um olhar selvagem. O cachorro, de certa maneira, entendeu a ternura humana. Já a galinha continua com aquele olhar (risos). Acho que ela pretendia isso.
LM: Sim, sim, isso mesmo. A galinha não está submetida emocionalmente ao homem.
MN: Então, existe esse comando “não se submeta”, que é difícil. Depois, também teve outro elemento importante, a foto de um assassino serial. Isso foi muito forte para mim, pois era um cara bonito, jovem que inclusive parecia o Truman Capote. Não me canso de repetir isso.
LM: Robledo Puch, assassino que cometeu 11 crimes aos 17 ou 18 anos.
MN: Aquilo era um chamado para eu ser um menino. Acredito que a Lucrecia viu em mim um pan ou algo assim, e quis tirar disso o Vicunha Porto, esse “boi de piranha”, o bode expiatório em que você bota o mal, afastando-o de si. Sobra o menino que quase não tem culpa de ter feito tanta loucura e bobagem.

Lucrecia, e como foram as filmagens?
LM:
Esse filme tem um grande desafio, pois começar pelo fim era muito difícil. Todavia, para todos, partir do final, entre outras coisas, por conta do Matheus, foi imprescindível. Comentávamos que conhecer previamente o Vicunha Porto nos fazia lembrar daquele diabo vermelho gritando. Foi realmente importantíssimo e uma casualidade, na verdade uma ideia do diretor de produção, que sugeriu começarmos pelo término para que as pessoas, a cada dia, tivessem a noção de que, dali em diante, tudo seria gradativamente mais fácil. Isso acabou tornando tolerável o enorme esforço de todos. Foi uma ideia genial. Essas coisas são os milagres do cinema.

 

E a sua relação com os atores?
LM
Uma coisa importante de dizer é que não falo tanto com os atores durante as filmagens. Há uma coisa misteriosa nos intérpretes, que não pretendo saber, pois senão trato de intervir e arruinar. Deixo-os trabalhar com seus processos próprios, sem tentar entendê-los. Depois, quando estou atrás da câmera, quero ver quem eles são. Se sei isso de antemão, perco o desejo. Quanto ao Matheus, ficava me perguntando: quem será hoje o Matheus?. Isso é fascinante. Ter atores demasiadamente seguros de si é algo bastante entediante. Eu diria, até, que eles se tornam impossíveis de filmar. Já me aconteceu, não neste filme, mas em outros, de ligar a câmera e saber tudo que iria acontecer. Isso é muito tedioso.

 

E qual o papel do improviso nisso tudo?
LM:
Muitas pessoas alheias ao cinema, ou mesmo estudantes, acham que improvisar é não preparar. Improvisar é preparar muitíssimo e depois deixar que isso cresça. É ter paciência.
MN: Que bonito isso, é verdade. Você constrói, conceitua, ensaia e depois o animal tem de ser solto.
LM: Se não acontece isso, todos perdem o desejo. Os atores que nos acompanharam em Zama são muito especiais, trabalhar com eles foi um prazer infinito. Nas filmagens tínhamos bastante esforço físico, íamos do frio ao calor, havia cobras, alagamentos, chuva, e tudo isso foi relativamente fácil de suportar porque havia essa curiosidade pairando sobre todos.

Lucrecia, como você vê esse movimento global de descentralização do poder, inclusive no que diz respeito ao cinema?
LM:
Tudo o que foi dito e escrito sobre nosso continente, o foi pelo homem branco. A educação que temos é branca. Seguiremos cegos se continuarmos nesse caminho. A única possibilidade de melhorar o continente é pervertendo, como disse o Matheus, a nossa instrução branca. E isso é muito difícil, pois significa aceitar a iniquidade da injustiça das doutrinas vigentes. Não posso escapar à minha criação. Sou uma mulher branca, ensinada como branca. É muito difícil para mim pensar a partir de outro lugar, mas tenho de fazer uma tentativa, não de me colocar no espaço do outro, mas de me dar conta da maldade do branco. Isto eu posso fazer: vigiar minha própria educação. Todos os problemas desse continente dizem respeito a essa didática branca, que não serve à nossa realidade multirracial. Toda a política, seja de esquerda ou de direita, é branca. Em Zama tentei não colocar índios e negros reproduzindo gestos de submissão absoluta. Nada, nem Guantánamo, consegue submeter uma pessoa até sua última célula. Então, procurei filmar sem que eles acreditem totalmente no poder. É o que acontece na realidade. Achamos que a Rocinha (Lucrecia aponta à favela, que se vê ao longe) olha para o resto do Rio de Janeiro com respeito. Os moradores de lá estão nos aguentando, estão nos suportando, tão e somente.

(Entrevista concedida ao vivo, no Rio de Janeiro, em outubro de 2017)

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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