Murilo Benício já era um ator consagrado quando resolveu debutar como diretor de cinema. E O Beijo no Asfalto (2017) marcou o início dessa nova fase da carreira do artista. Com a ousadia de escancarar a linguagem e o processo do teatro num filme que novamente levou às telonas uma das histórias mais célebres de Nelson Rodrigues, ele empolgou muita gente que anunciou a partir disso o surgimento de outro cineasta brasileiro ao qual acompanhar bem de perto. A segunda incursão de Benício pela direção de longas-metragens é Pérola (2023), baseado na peça homônima de Mauro Rasi, um filme completamente diferente no qual o signo principal é o afeto. Tendo um elenco estelar encabeçado pela excepcional Drica Moraes, ele conta as histórias de uma matriarca de personalidade forte que sonha constantemente com uma vida melhor para a sua família. Tentando organizar a vida de todo mundo, Pérola acaba tendo problemas de convivência com o filho aspirante a escritor, o narrador dessa jornada familiar no interior de São Paulo. E o Papo de Cinema conversou remotamente com Murilo Benício para saber um pouco mais sobre o filme que chega aos cinemas nesta quinta-feira, 28. O resultado deste bate-papo você confere logo abaixo.
Esse é seu segundo longa como diretor, o segundo baseado numa peça de teatro…
Foi sem querer (risos). Quem me chamou atenção para isso foi o meu filho. Ele chegou a me perguntar: “vem cá, você vai só fazer filmes baseados em peças de teatro?” (risos). Mas, nem lembrava direito que Nelson Rodrigues era teatro. Para mim, era um autor que vivia embaixo do braço do meu pai, um funcionário público do Banco do Brasil na cidade de Niterói. Não tinha uma vida mais careta do que aquele cara estar com Nelson embaixo do braço. Meu pai vivia falando que Nelson era revolucionário, um gênio. Já deu para entender meu pai, né? Quando a gente começa a estudar teatro, chega uma hora que inevitavelmente se depara com Nelson Rodrigues e para mim isso veio de um modo carinhoso, pois era algo paterno. Parecia que aquele homem fazia parte da minha família. Aí pensei: “nossa, como o meu pai era legal por gostar tanto disso” (risos). Eu tinha um pai com uma cabeça muito boa. E não sei te dizer o porquê de ter escolhido O Beijo no Asfalto, além de ser uma das peças dele que eu mais gosto.
E o Pérola também vem de uma experiência pessoal, não é?
Sim, de uma experiência minha com o Mauro (Rasi, autor da peça na qual o filme se baseia). Em 1995, eu tinha de 25 para 26 anos de idade, começando uma carreira e Mauro Rasi me chama para fazer uma peça de teatro. Naquela época era como se você fosse convocado pelo Woody Allen nos anos 1980. Você não precisa nem ler o roteiro. Eu não tinha visto Pérola, mas a peça estava em cartaz. O Mauro disse para eu assistir à peça e depois a gente sairia para jantar. Não lembro nada daquele jantar, a não ser de eu dizendo que ele precisava transformar a peça em filme. Pérola foi um marco, uma peça muito impactante. E se há algo que conseguimos manter dela no filme é uma essência do Mauro, um colorido dele, uma coisa profunda que ele me transmitiu quando vi a peça. Ela atravessou o meu coração. Consigo ver a minha história ali, apesar de a minha história não ter nada a ver com aquilo. E temos ouvido isso das pessoas, elas estão se enxergando no filme.
E como foi traduzir em termos cinematográficos esse afeto que interliga os personagens?
Cara, arrancou pedaços de mim, pois estava também falando da minha mãe, e ela já foi embora. Tem lugares ali que foram difíceis de chegar. O filme é leve, pode até ser confundido com uma comédia, e ele não tem uma grande pretensão, sabe? Mas, ao mesmo tempo, fala desse outro lugar de identificação. Tem gente que se identifica porque deseja sair de um lugar geográfico, por exemplo. Contei a minha história usando a história do Mauro Rasi e achei que, fazendo isso, estaria contando um pouco da história de todo mundo. Tive de me confrontar com a minha história, com a memória que tenho da minha mãe. O presente é apenas o filho na praia, o resto é tudo memória. Não foi fácil, às vezes doía forte em mim.
Não me parece que com Pérola você estivesse querendo consolidar um estilo de dirigir, visto que ele é muito diferente de O Beijo no Asfalto. É por aí?
Olha, sou um diretor intuitivo, não do tipo estudado. Então, nem saberia o que significa consolidar um estilo. Se eu entrasse nessa estaria perdido. Isso me remete, sei lá, a algo meio metido. Estou contando a história do Mauro, fazendo uma reverência a esse cara que, antes de mais nada, foi meu amigo. Então, quero fazer o filme que ele faria. Tem cores de Pedro Almodóvar no Pérola, porque Mauro Rasi é Almodóvar, pois ele fica ali entre o real e o teatral. Pensei o tempo inteiro em que filme o Mauro faria se ele tivesse a oportunidade. Não entendo de lentes e afins, adoraria entender, mas não entendo. Dia desses fiquei na internet tentando entender, aliás (risos).
Mas, se há alguma coisa que interliga os dois filmes que você dirigiu é a beleza das imagens. Como foi o teu trabalho com a Kika Cunha, a fotógrafa do Pérola?
Estávamos falando há pouco sobre a minha falta de entendimento teórico da coisa. Não lembro realmente qual filme foi, mas mostrei a cena de um filme à Kika e ela entendeu o que eu estava querendo, principalmente para a cor do longa-metragem. E aí conversamos sobre essa diferença entre os tons mais quentes do passado e os mais frios desse presente em que a Pérola se foi. Quando perdi meus pais, o mundo ficou preto e branco, realmente eu não via mais a cor no mundo. Talvez a conversa com a Kika sobre essa minha sensação tenha influenciado alguma coisa nessa diferença de temperatura de cor. Esse foi meu jeito com ela, usando exemplos.
Vamos falar um pouco sobre a Drica Moraes, a grande estrela do filme. Como foi o trabalho com ela e, aproveitando, a Vera Holtz, intérprete da Pérola no teatro, já assistiu ao filme?
A Vera viu em São Paulo, sentada ao lado da Drica. Eu até falei: “Drica, você é louca de ver esse filme ao lado da Vera“ (risos). Corajosa, né? Essas mulheres são muito corajosas. Parece que a Vera gostou muito, ficou fazendo brincadeiras ao longo da projeção, mas para saber ao certo seria legal você trocar uma ideia com a Drica (risos). De toda forma, sei que foi lindo. Há muito tempo sou apaixonado pela atriz que a Drica é. Isso antes mesmo da televisão. Depois nos encontramos pouco na TV, fizemos uma novela na qual quase não nos cruzamos. Quando decidi fazer o filme, não havia nenhum nome antes dele, somente depois, caso ela não aceitasse.
Por fim, quais são as dores e as delícias de ser um ator diretor? Pergunto isso, porque me parece evidente que o desempenho do elenco de Pérola passa pelo seu trabalho como diretor. Podemos colocar um pouco dessa excelência na sua conta?
Não (risos). Antes de mais nada, temos que colocar na conta do talento do elenco. Para mim, ser um ator diretor é apenas delícia. Realmente, a minha visão como diretor passa longe de privilegiar o jeito de filmar, ela está bem mais ligada à minha relação direta com o ator. Essa minha relação com o elenco é o que me atrai. Recentemente, eu estava fazendo Justiça 2, contracenando com a Julia Lemmertz, e tinha uma cena que eu não estava conseguindo fazer. Tinha a sensação de que não estava ficando bom. E, como diretor, acredito que consigo antever quando o ator não está se sentindo bem fazendo algo, aí ajudo nesses ajustes sobre as dificuldades do outro, mas que às vezes também já foram as minhas dificuldades. Estou muito encantado com isso de montar o ambiente propício para que os atores e as atrizes possam brilhar. Isso para mim é fundamental. Sou ator e também quero estar bem nos filmes (risos).
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