José Walter Lima é cineasta, produtor e artista plástico. Figura essencial do cenário criativo baiano, foi um dos fundadores do Grupo Experimental de Cinema da Bahia, em 1965. Além disso, trabalhou na assistência em longas-metragens como Meteorango Kid: O Herói Intergalático (1969) e produziu shows de Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Luiz Melodia, Jorge Mautner e Jards Macalé. Em Rogério Duarte: O Tropikaoslista (2018) ele resgata cinematograficamente um dos sujeitos incontornáveis do movimento tropicalista brasileiro, exatamente o homem cuja criatividade, entre outras muitas coisas, está por trás da criação do icônico cartaz de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), quiçá um dos mais bonitos e emblemáticos do mundo. José Walter Lima nos atendeu para este Papo de Cinema por telefone, em que ele fala da importância de manter vivo o ímpeto das nossas figuras libertárias, bem como destrincha sua concepção artística para abordar um pensador. Confira:

 

Como você conheceu o Rogério Duarte? De que maneira surgiu e foi se desenhando essa vontade de fazer o filme sobre ele?
Conheci Rogério na década de 60, no Rio de Janeiro. Fomos muito amigos, por mais de 40 anos. Trabalhamos juntos num projeto na gravadora Polygram e no livro Musicor. Já o filme surgiu quando reencontrei Rogério após muitos anos sem vê-lo. Ele tinha comprado uma fazenda com o Gilberto Gil e virado Hare Krishna. O encontrei num mercado em Salvador, bastante doente e debilitado. Seu filho, que o acompanhava, pediu ajuda. Pensei em fazer um filme. Comecei o processo de captação filmando, primeiro, uma pequena parte na casa dele. Assim que conseguimos os recursos, mergulhamos para valer. Rogério me pediu apenas para não fazer um filme careta. Ele dizia que a vanguarda já inexiste no Brasil. Queria que, com o filme, eu retomasse a vanguarda estética. Eu disse: “pô, você tá exigindo muito” (risos). Um desafio enorme. Rogério era uma pessoa difícil, mas foi extremamente profissional.

Qual a reação do Rogério ao filme?
Uns dois meses antes do Rogério morrer, mostrei a ele o filme completo. Fui até o templo Hare Krishna para isso. Quando perguntei a sua opinião, ele disse: “É muito respeitoso, gostei muito”. Imaginei que, pelo jeito, não tinha gostado (risos).  Todavia, mais tarde, a um amigo em comum, ele falou que achou o resultado “do caralho”. Mas é, realmente, um longa-metragem diferente, porque apenas quem fala é o Rogério. Ele tinha uma verve fantástica e uma mente brilhante. Ninguém poderia falar por ele. Há participações, mas não depoimentos. Isso era vital.

 

A que você atribui esse interesse pelas figuras do Tropicalismo, vide o recente lançamento do documentário sobre Torquato Neto e o acerca de Waly Salomão?
Meu filme está vindo na hora cerca. Cinquenta anos após 1968. Veja só, o espetáculo O Rei da Vela sendo remontado, o documentário do Torquato Neto e agora esse do Rogério. Quem sabe a gente não põe novamente um sentimento de brasilidade nas pessoas, remonta esse xadrez revolucionário, trazendo de volta uma sensação dos anos 60 e 70, não é? Hoje em dia está tudo ruim. É preciso sair em busca do tempo perdido. Desse caos em que vivemos, do apocalipse contemporâneo, somente a arte pode salvar. Na década de 60 houve o salvamento, mas o sistema logo nos engoliu. Agora não vamos deixar, estaremos mais atentos. Não podemos deixar. No campo da arte, o que vemos hoje é conformista, algo para a classe média consumir. Até a música, antes uma coisa maravilhosa, está abaixo da mediocridade. É preciso se engajar na política cultural. Não podemos ter mais retrocesso.

O filme tomou forma mais previamente ou a partir da pesquisa? Como foi esse processo?
Depois que fiz a decupagem, comecei a pensar em como seria o filme. Mas, a gente tem sempre uma ideia prévia. Neste, fomos colando tudo, brincando. Por exemplo, para fazer aquela introdução, uma panorâmica do século 20, recorremos a uma “montagem nuclear”, como Glauber Rocha falava. Ficou bacana. Não é propriamente um filme de vanguarda, mas arrojado. Para mim é um doc/arte. Não é comum. Foge à mesmice das entrevistas, dos depoimentos.

 

Teve algo que você não colocou no corte final por indicação do próprio Rogério?
Não, Rogério se meteu em nada, me deu autonomia total. Não botei mais coisas porque o tempo não permitiu. Tenho material para três ou quatro horas. Foi necessária uma engenharia imagética. O conjunto tem de ter pulsação, um som perfeito, uma imagem bacana. A parte dele com o Anísio Teixeira, seu tio, e também a relação com o Wilson Batista, tinha mais pano para a manga. Entretanto, infelizmente, não deu para colocar tudo no filme.

 

Houve preocupação em emular, pela via da forma, a criatividade de Rogério?
Ele confiava em mim. Minha preocupação era apenas com a narrativa, tenho isso de estar voltado à ela, à busca estética. Na minha trajetória como criador sempre foi assim. Fiz filmes tropicalistas, então é da minha concepção artística. Às vezes é difícil, porque as pessoas pensam que os frutos dessa fuga da mesmice são incompreensíveis. Sou da linha do político-poético-filosófico. Gosto dessa linha. Não tenho como sair dessa.

 

(Entrevista concedida por telefone, numa ponte Salvador/Rio de Janeiro, em abril de 2018)

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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